ACORDES
DISSONANTES
Beto
Muniz
De repente
eu era menino, inocente no gostar, nas ações e nos sentimentos. Noutro
instante tomei conhecimento do mundo. Soube da vida, e das sucessões de
imprevistos que nos obrigam a tomar decisões num moto-contínuo. Essa descoberta
está impressa no meu passado marcando a fronteira entre o menino e o homem,
como se fosse uma luz sepultando a felicidade e os medos ingênuos no reino
sombrio do entendimento — penso que o conhecimento me trouxe dissabores.
Eu ouvia sons terríveis. Samuel, meu irmão, tinha na época doze anos, minha irmã dois anos menos e eu era a raspa-do-tacho. Tinha quatro anos. Durante o dia papai trabalhava como pedreiro, chegava em casa quase no mesmo horário em que meu irmão voltava da escola. Tinham pouco tempo para se arrumar, jantar e sumir na esquina em direção ao escuro da noite. Eu jamais os vi voltar. Sabia que tinham voltado por encontrar meu irmão dormindo no beliche, acima, quando eu acordava. Nessas horas papai já tinha saído em direção às obras que construía e ao Samuel era permitido dormir até quase o meio do dia, depois era almoço e escola. Minha irmã estudava pela manhã e eu só brincava, às vezes com mamãe, noutras, um pouco com meu irmão e a tarde toda com minha irmã. Papai quase nunca tinha tempo para mim, e penso que eu tinha medo dele o tempo todo. Talvez não, talvez fosse só um estranhamento daquele homenzarrão se aproximando com seus dedos grandes, ásperos, marcados de cimento, tocando meu rosto, braços e pescoço. Geralmente ele tentava me fazer cócegas embaixo do queixo e eu ria mais por temor de não agradá-lo que das cócegas. Eu amava meu
pai, não tinha dúvidas disso, mas ao mesmo tempo eu o temia sem que ele
jamais tivesse maltratado a mim ou qualquer integrante da minha família.
Aliás, ele sempre estava sorrindo. Duas fileiras de dentes impressionantes
e perfeitos, em linhas, eram mostrados com facilidade. Até então eu não
sabia exatamente porque tinha medo de papai. Penso que já relacionava
meu pai aos sons terríveis que eu ouvia. Quando começaram as férias escolares minha irmã começou a acompanhá-lo rumo à noite. Eles se arrumavam e saiam no início da noite. Minha irmã passou a acordar no meio do dia, e quando se levantava não tinha ânimo para brincar comigo, mas por alguma razão eu não me incomodava, só ficava triste. Uma tristeza conformada, diferente daquela que ainda se mostrava nos olhos do meu pai e razão pela qual continuei a esperar por ele no portão todas as tardes. Menos aos domingos, que ele não trabalhava nas obras, mas saía ao escurecer. Eu nunca
tive coragem de correr e pular em seu pescoço quando ele estava arrumado
para sair. Papai sujo parecia mais meu, mais acessível, menos ameaçador.
Dentro do terno acontecia uma metamorfose que o fazia maior, diferente,
quase desconhecido. A única evidência de que ainda era o mesmo, era quando
ele me dava um beijo e pedia para obedecer à mamãe e não demorar em ir
pra cama. Eu, sem sorrir, concordava com um movimento de cabeça. Depois
que pegava seu chapéu e a porta se fechava eu ficava me perguntando quando
chegaria minha vez de ir com papai. O que eu deveria fazer para ser minha
vez? Talvez se deixasse de ter medo dele eu poderia acompanhá-lo, pensava,
mas dormia antes de chegar a uma conclusão. E assim passaram os dias de
festas de fim de ano. Um dia papai
não foi trabalhar. Pela manhã estava em casa e só quando minha irmã voltou
da escola ele se preparou para sair. Arrumaram-se e sumiram na noite como
sempre. No dia seguinte ele novamente estava em casa. Eu gostei. Tinha
papai para brincar comigo algumas horas do dia. Apesar do meu medo disfarçado,
gostava de ter papai por perto. Quando minha irmã acordou, papai pegou
a caixa escura, aquela que levava todas as noites, sentou numa das cadeiras,
depositou- a sobre os joelhos e abriu. Eu vi um objeto prateado com um
formato engraçado e cheio de botões. Mais botões que as minhas camisas,
mais botões que os vestidos de mamãe. Botões lindos! Papai segurava com
carinho aquele objeto. Pegou uma flanela nova, talvez o pedaço de pano
mais novo da casa inteira, e acariciou cada pedaço prateado, cada botão,
cada curva e reentrância. Eu não me mexia. Finalmente estava vendo o ocupante
da caixa misteriosa. Até então, quando não estava nas mãos dele, a caixa
sempre estivera no quarto dos meus pais e eu jamais tivera autorização
para chegar perto dela. (continua no próximo tema) |