PERSÉFONE
Anna Carolina N. Fagundes
You had me several years ago
When I was still quite naïve.
Well, you said that we made such a pretty pair,
And that you would never leave.
But you gave away the things you loved -
And one of them was me!
(Carly Simon, "You're so vain")
Era uma daquelas festas que reuniam a alta sociedade paulista nos anos 70 - muito laquê, muitas jóias, muito coquetel de camarão com molho rosê (era a moda da época). Diziam ser a época da "longa madrugada" da democracia nacional, gente morrendo e gente matando, pior do que hoje em dia. Porque hoje sabemos, o jornal nos fala. Antes, era o silêncio, o horrível silêncio.
E lá estava Maria Cecília, de rosa e dourado, o cabelo preto já um pouco salpicado de fios brancos, bebendo whisky escondida do marido num canto do salão. Ela olhava as mulheres chiques que caminhavam com graça pelo salão, e ela, como se fosse uma adolescente em um baile de debutantes, virando copos de bebida alcóolica com a sofreguidão do suicida que toma veneno.
Fugindo do marido - um engenheiro que lhe dava dinheiro e presentes mas a maltratava sempre, dizendo para quem quisesse ouvir que ela era uma "árvore seca", por não lhe dar filhos - Cecília caminhou para outra parte do salão, próxima a uma janela. Pensava em Mateus, que há muito não via. Ele, amor perdido de juventude, o único homem que realmente a via como uma pessoa, não como uma reprodutora ou uma interesseira qualquer.
Podia lembrar dele, de olhos fechados - o cabelo cacheado, os olhos claros, o modo cortês que escondia a fúria de um homem nascido e criado na chamada classe trabalhadora, do advogado que sentia raiva por não poder atuar decentemente. Mateus era calmíssimo na superfície, mas dentro dele havia um inferno pronto para explodir.
Da última vez que se encontraram, ele bêbado e ela sóbria, Cecília ouviu tudo o que merecia ouvir - todo o ódio que ele sentia por ter sido trocado por dinheiro, a decepção, o amargor. A frase que permanecia em seus ouvidos era sempre a mesma: "Você se transformou. De uma mulher, passou a ser um brinquedinho em cima da estante dele. Era isso o que você queria?"
E a resposta que ela dava a si mesma era não, não queria, mas era o que precisava ser feito. Ela só tinha 19 anos quando se casou. O que ela entendia do mundo? Sabia que Mateus não tinha dinheiro e seu futuro marido tinha de sobra, e era aquilo o que ela queria. Ela queria alguém que pudesse sustentá-la. O amor não contava antes.
Mais um copo de whisky servido, e de repente uma mão que se ergueu por trás dela, tomando o vidro de suas mãos, colocando-o longe de seu alcance. Ela olhou para trás, surpresa, tonta (o corpo não agüentou o giro do pescoço, cambaleou e quase caiu). Os olhos embaçados viram Mateus, num terno escuro, o cabelo um pouco mais ralo - mas o mesmo inferno estampado nos olhos claros.
- Tentando se transformar no que, hoje? - ele sorriu.
Ela não respondeu, apenas segurou firme as mãos dele. Mateus compreendeu, e a levou para fora do salão, para algum lugar desconhecido, para onde ela pudesse respirar novamente. Mesmo sabendo que amanhã ela voltaria ao normal - que ela voltaria para o marido. Ainda assim, ele a levou embora, retomando-a para si por uma noite que fosse.
E em nenhum momento ela olhou para trás, para as sombras do salão.
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