BEM-ME-QUERO
Reinaldo de Morais Filho
Quando L. se mudou para aquele apartamento pequeno em um canto de Ipanema,
pendurou a cama próximo à janela e passou todas as horas vagas com o olho esquerdo fixado no cruzamento.
Em dois meses poderia tirar o curativo do olho ao lado - L. perdeu a visão direita em uma brincadeira com facas no último Natal.
Contudo, aos vinte e dois anos, não retirou o sorriso dos lábios desde o instante em que secou a última gota de sangue dos seus beiços, como se
tivesse perdido uma unha inútil do dedão do pé.
E com o mesmo ar feliz, chegava da aula, do trabalho, ou do hospital, arrancava à força as peças de roupa, vigiava rapidamente o corpo perfeito
esculpido no reflexo do espelho, para, então, recostar os seios nus no mármore frio do parapeito da janela.
L. adorava brincar com o sinal, contando na madrugada vazia os carros que chegavam no cruzamento, "E se estiver na luz verde, bem-me-quer; se estiver
vermelho, mal-me-quer; se estiver amarelo, eu mudo de paixão".
E com isso, sorria a madrugada meia na busca de novos homens para gostar, perguntando-se por que uns lhe negavam e outros tantos lhe queriam - na doce
inconstância do seu "jogo do acaso".
Dormia um pequeno cochilo ali mesmo naquela janela gelada, para escorregar em seguida para os lençóis de linho e adormecer com um olho vendo o mundo, o
outro construindo a felicidade em um cruzamento movimentado onde o sinal brilhava sempre verde.
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