CAMINHOS
Marcelo S. Lopes
A Kombi seguia com a lotação esgotada. Uma chuva fina caia lentamente e o limpador de pára-brisas rangia a cada aceno: "tiaau".
Moacyr, entediado, deixava-se levar pelas lembranças da cabocla. Havia muitos anos desde então. Mas enquanto as lembranças recentes andavam cada vez mais fluidas, as da juventude pareciam solidificar-se dentro dele, ganhando mais cores e mais luz. Quase podia tocar a própria memória quando, de relance, pelo retrovisor do automóvel, via a cabocla sorrindo com a boca pintada de vermelho. Assim era que, dia após dia, seguia preenchendo de novos detalhes as cenas que trazia guardadas com ele. Sentia o cheiro da água do igarapé, da casa da farinha e de todos os outros lugares em que estiveram juntos. "Ah! O igarapé..." - suspirou em pensamento. Foi ali, às suas margens, que a cabocla forrou o chão com seu vestido de linho grosso. Foi ali mesmo que viu, pela primeira vez, as curvas daquela pele de bronze. O pano do vestido espetava-lhe as costas e o ar embriagava-se da umidade do seu corpo...
Beep!... - Moacyr, tá na escuta?
O motorista apanhou o rádio no console e, num sacolejo ágil apesar da barriga proeminente, pôs-se ereto no banco como se pilotasse um Boeing:
Beep! ... - Pode falar...
Beep! ... - Tá onde?
Beep! ... - Tô passando no posto perto do cruzamento...
Beep! ... - Tá lotado?
Beep! ... - Tô...
Beep! ... - É que tem uma blitz...
Beep! ... - Onde?
Beep! ... - No sinal, depois da ponte.
Beep! ... - Pararam alguém?
Beep! ... - Todo mundo que tava com excesso... "Sinal vermelho", Moacyr.
Beep! ... - Eu sei, Germano. Eu sei...
- Olha, - disse o motorista, enquanto parava no acostamento do ponto - tem uma blitz aí na frente e eles não tão deixando passar com dez passageiros, então têm que descer dois. Eu devolvo o dinheiro.
A Kombi parou e a porta automática se abriu. A senhora que ia espremida no banco de trás bradou:
- Isso é muita falta de respeito. Bem que o meu filho me diz pra eu não andar nesses carros, que esses motoristas não têm compromisso com nada! Vocês me dão licença que eu quero descer. Vê o meu dinheiro, moço! - pegou o dinheiro e desceu.
Na falta de outro voluntário e aflito para "seguir viagem", o motorista sugeriu:
- O mais certo é descer quem entrou por último...
O rapaz que havia entrado por último, e que já se refestelava com o espaço deixado pela senhora, prontamente rebateu:
- Desce o que tá mais perto da porta, tá todo mundo atrasado, pô!
- Desce você que entrou por último.
- Ah, mas não desço mesmo.
- Você não ouviu o motorista não, é?!
- Não desço e quero ver me tirar!
- Se precisar eu tiro!
- Só se tu fosse dois!
Antes da briga estourar o motorista interveio:
- Violência aqui dentro não! Vocês peguem o dinheiro de vocês e vão resolver isso lá fora!
Aproveitou-se dos ânimos e entregou o dinheiro aos valentões que desceram do carro para tirar as diferenças. A viagem seguiu. Aos poucos Moacyr submergia naquelas águas tranqüilas novamente, ignorando completamente a discussão que se iniciara entre os passageiros. Quem deveria ter descido? E mais uma vez sentia o pano do vestido espetando-lhe as costas, e o ar mais que úmido à sua volta ...
Beep! ... - Moacyr ?! ...
Outro sacolejo.
Beep! ... - Que que é, Germano?
Beep! ... - Sabe a blitz?
Beep! ... - Sei, Germano.
Beep! ... - Pois é, Moacyr, parece que teve uma briga lá perto do posto. A polícia desmontou a blitz e foi pra lá ...
Beep! ... - Tá bom, Germano.
A Kombi parou logo adiante. Três passageiros subiram. Mais duas curvas e Moacyr, espalhado no banco, já andava de pés descalços pela casa da farinha...
Beep! ... - Moacyr?!
Beep! ... - Mas o que que é, Germano!?
Beep! ... - Sinal verde, Moacyr, sinal verde.
Beep! ... - Eu sei, Germano. Eu sei...
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