A TOUPEIRA DAS VAIDADES
Raymundo Silveira

Assim como há pessoas viciadas em álcool em cocaína, em jogo, em cigarro, em Internet, Amadeus Feitosa era viciado em elogios. Mas não se tratava de um viciozinho à toa; ele percorria léguas à cata de um simples "que homem!" Os colegas o chamavam — pelas costas — de AmaEUS. Certo dia, num banquete de homenagem a um figurão da máquina burocrática à qual ele pertencia como médico e professor universitário, ouviu alguém murmurar olhando casualmente para ele: "é, não resta dúvida; é uma figura exemplar". O comentário se referia ao homenageado, mas entendeu que era sobre ele que falavam. "Como é que é? O que foi que vocês disseram?" Já conhecendo aquela avidez por louvores o seu vizinho de mesa retrucou: "estávamos comentando aqui o quanto o senhor é um homem importante e bem sucedido, doutor!". Um sorriso escancarado não o abandonou mais naquela noite. Sentia-se mais importante do que o figurão homenageado. Costumava pagar pequenas fortunas a colunistas sociais, escrevia sobre o que lhe viesse à cabeça para todas as revistas médicas, embora nem todas o publicassem, adulava jornalistas a fim de que o seu nome aparecesse todos os dias nos jornais. Nunca perdia festas de aniversário, de casamento de batizado, enterro, missa de sétimo dia, reuniões de qualquer natureza, para quando dissessem "a palavra está facultada" ele se apressasse como o primeiro, e às vezes, como o único a falar. Algumas vezes, quando percebiam a sua presença, esta formalidade era evitada. Quando a Câmara Municipal de uma cidade vizinha, onde ele havia clinicado durante alguns anos, lhe comunicou que lhe teria sido conferido o título de "Cidadão Cidadopolitano", o homem quase desmaiou de felicidade. "Este é um dos dias mais felizes da minha existência", declarou a um repórter de uma estação de rádio. Gastou o salário de dois meses para mandar confeccionar um smoking sob medida, pelo alfaiate mais famoso da capital, comprou sapatos italianos (importados do Brasil), camisas de seda e cuecas inglesas, em suma, vestiu-se como um príncipe para receber tão importante homenagem. 

No dia e na hora aprazados chegou ao local num automóvel de luxo alugado, com motorista enluvado e tudo mais. Ele preparara um discurso e fez questão de pronunciá-lo como primeiro ato da sessão solene. "Senhoras e senhores. Anos atrás..." Havia um vereador gaiato que tinha ingerido umas doses de conhaques. "Doutor, o senhor já viu ânus à frente?" A platéia caiu na gargalhada. O doutor ficou vermelho como um tomate, mas continuou. "Anos atrás eu deixei com muitas saudades esta terra..." E arengou meia hora enchendo o saco e a paciência de todo mundo. "Dando prosseguimento à sessão extraordinária desta Câmara Municipal que tem por finalidade conceder o título de cidadão de Cidadópolis a dois importantes personagens que pelos seus relevantes serviços prestados a este município, mereceram..." "Em primeiro lugar, chamaria para receber a comenda, o Cidadão João Ferreira, "o gari do ano", por sua dedicação, senso do cumprimento do dever, espírito de cidadania..." Subiu ao palco um homem simples, vestido com uma roupa muito limpa, mas de brim ordinário e calçado com sandálias havaianas. O Dr. Amadeus desta vez desmaiou mesmo, mas por um motivo totalmente oposto ao do dia em que recebeu a notícia do título, e teve de ser retirado às pressas do local. Nunca mais pôs os pés em Cidadópolis.

Amadeus anunciava sem o menor pudor, "aqui neste lugar só existem três M É D I C O S que merecem esse nome: EU, o Dr. Furucuteu e o Dr. Italiocando". Ou então: "Por enquanto sou um Doutor, mas pretendo ainda chegar a Fellow, pela Universidade de Londres e, quem sabe, a Sir do Império Britânico". Os colegas mais mordazes diziam pelas suas costas: "só se for fellow da puta", mas na sua presença — aqueles que se sentiam à vontade, ironizavam: "Ó Amadeus, tu estás sendo muito modesto, cara; falta também tu seres membro da Casa dos Lordes, Primeiro Ministro, Rei, e quem sabe, farás jus até à última sílaba do teu nome. Era otorrinolaringologista e professor assistente da Faculdade de Medicina, mas só se comunicava com alguns colegas e com o catedrático. "Bom dia Professor Amadeus". Só estavam os dois no elevador. O interno repetiu: "Bom dia Professor Doutor". Parecia estar falando para as paredes. O interno sabia que ele não era surdo, pois estava habituado a assistir todos os dias às suas aulas magistrais de onde saía mais impressionado com o show do que tendo obtido propriamente conhecimentos científicos. Adorava humilhar até mesmo os seus próprios colegas mais destacados e quase não operava mais no Hospital-Escola, embora houvesse sido ali onde aprendeu e praticou durante mais de duas décadas. Quem esteve habituado - pela força de querer aprender o ofício - a freqüentar conferências, conclaves, cursos magistrais e outras assembléias similares onde - mais do que o interesse científico - costumava estar em evidência o caráter essencialmente narcisista do conferencista, foi testemunha do exibicionismo compulsivo do Dr. Amadeus e das autênticas explosões do seu Ego incandescente. Agora já não operava mais; não apenas porque aquilo não lhe rendia dinheiro, como também por se sentir muito acima dos médicos que ainda tinham de atuar junto a uma clientela dita subalterna. Limitava-se, por conseguinte, às suas conferências espetaculares e a percorrer enfermarias e ambulatórios com dois propósitos: exibir a sua pseudo-sabença e criticar possíveis falhas dos colegas. Adorava cercar-se de estudantes durante estas ocasiões. "Vejam este 'caso'!" Não esta cliente, esta paciente, esta pessoa, mas "este caso". "Exemplo típico daquilo que não deve ser feito. Operação mal executada. Ficaram restos de tecidos das amídalas que irão funcionar logo, logo, como se ela nunca tivesse sido operada. Enfim, 'serviço porco'. Minha filha, há quanto tempo você foi operada?" "Tá com mais de cinco anos". "E quem foi o idiota que lhe operou?" "O senhor não se lembra? E num foi o senhor mesmo, dotô!" 

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