TUDO PASSA
Mariazinha Cremasco
Regina fazia as unhas das mãos todas as semanas. Era parte de sua personalidade tê-las sempre bem feitas e pintadas. Chegava a ser uma mania. Com os pés não tinha os mesmos cuidados. De três em três semanas e olhe lá. Sobrancelhas? Estavam horríveis, descuidadas.
Nesse dia, olhando-se criteriosamente, notou os estragos que tinham surgido em sua aparência, desde aquela manhã desastrosa. Mais de um mês sem retocar a raiz dos cabelos, sem se depilar, sem fazer os pés. Deixara de usar seus cremes, a pele estava seca.
Só agora, depois do telefonema de José Carlos convidando-a para sair - na verdade, quase intimando-a a encontrar-se com ele na próxima terça-feira - foi que percebeu o quanto se descuidara. Era ele o culpado por sua baixa auto-estima. Ela tinha o péssimo hábito de culpar a tudo e a todos por seus problemas e angústias. Continuou olhando a figura desgrenhada por longo tempo. Solteira, quarenta anos, mantinha romance com um homem casado e não se incomodava com esse fato. "O traidor é ele. Dane-se!". Mas ressentia-se com o fato de se verem tão pouco.
Quatros semanas inteiras e alguns dias desde a última vez em que tinham estado juntos. Nem queria lembrar. Tinha sido horrível. O filho da mãe deixara "sem querer" o celular ligado e, lógico, a esposa telefonou. Óbvio. Ela não fazia nada sem ele. Regina quis ser discreta, fazer de conta que não ouvia nada. Fingiu-se forte e superior quando abandonaram o motel às pressas, como dois ladrões.
Nesse dia jurou que nunca mais queria vê-lo. Mas os telefonemas continuaram. As mensagens de texto nos celulares, as conversas "calientes". Ele parecia feliz da maneira como estavam. Tinham até um código. Jamais lhe dera trabalho. Não fazia perguntas, nunca ligara para a casa dele. Era a amante ideal. Sem exigências ou cobranças. Só que não estava feliz. Queria mais, muito mais. Jurara que não atenderia suas ligações, mas era incapaz de ver o nome ou o número no BINA e ignorar. Era louca por ele.
Estava tão infeliz que sua vida se resumia a comer, ver televisão e aguardar os telefonemas. Tinha consciência disso e sabia que poderia até ser demitida por negligência no trabalho. Felizmente, não tinha problemas com a balança. A comida era um alívio para a falta que sentia.
Queria maltratá-lo, chamá-lo de covarde, dizer que sabia o quanto era dominado pela mulher, mas ficava calada. Quieta, desarvorada, como na poesia, esperava. Mas depois do último telefonema, novamente em estado de graça, abriu as portas para a receber de volta a vaidade esquecida e pensou em tudo que precisava fazer para encontrá-lo. Faltavam seis dias, e ele prometera que passariam o dia todo juntos.
Na sexta-feira fez os pés e as unhas das mãos. Tingiu a raiz dos cabelos, brancos desde os vinte e sete anos. Cortou um centímetro, mantendo o corte. Convencera o cabeleireiro a atendê-la em plena segunda-feira para uma escova e depilação completa. Estaria linda e cuidada. Nesses seis dias de espera ansiosa voltou a usar os cremes de que gostava tanto. Hidratantes, umectantes, esfoliantes, refrescantes, e tudo o que encontrava pela frente.
Na terça-feira marcada, às oito horas da manhã, linda e cheirosa, aguardou o telefonema para ir ao seu encontro. Nove horas, dez, onze, meio-dia. Nada. "Filho da puta! E pensar que deixei de comer todas as cebolas que surgiram na minha frente e que eu adoro. Deixei de lado a maravilhosa pizza de alho, domingo, na casa da Priscila. Comprei lingerie e roupa nova com o dinheiro que não tinha. E o desgraçado nem para avisar e desmarcar? Foda-se o nosso trato. Vou ligar para ele".
O celular estava na caixa postal. "Quer saber? Foda-se mesmo!". Telefonou para a casa dele. A mulher atendeu e ela destrambelhou a falar sem parar. A outra permaneceu muda, só ouviu e anotou o número que aparecera no identificador de chamadas.
Regina desligou aliviada. Não o teria, mas acabara com o seu casamento. Maquiagem borrada, roupa amassada, descalça, olhar fixo, ainda continuou ali, esperando o maldito ligar, dessa vez para lhe dar boas broncas. Às dezessete horas saiu do transe com o toque do telefone. Identificou o número da casa dele. Era ela,
A Esposa.
A voz seca, dura e firme explicou com muita frieza que o marido havia saído cedo de casa e que ela acabara de ser informada de um acidente na estrada. José Carlos estava morto.
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