CORAÇÕES
DE SUBÚRBIO
Luís Valise
Se eu dissesse
que o bairro fazia fila só para vê-la não seria exagero. E não eram poucas
as mulheres bonitas naquele bairro. Mas nenhuma como ela. Acostumada aos
olhares de admiração desde onde alcançava sua memória, Divina vivia acima
e além dos amigos de infância, dos colegas de escola, do resto dos mortais.
Mesmo em casa, tão logo teve o entendimento das coisas, respondia com
olhares entediados a qualquer conselho ou observação que seus pais lhe
fizessem. Seu passatempo preferido era desafiar o espelho: conseguia um
olhar mais sedutor que o refletido, um sorriso de alumbramento. Não foram
poucas as vezes em que o pai resmungara com a mãe:
— A culpa é tua. Na mocidade a mãe também tivera lá seus atrativos. Fora, à sua época, se é que se pode dizer isso de uma mãe, uma gostosa. Andara cercada de fiu-fius e galanteios, gostava disso, e já passava dos vinte e dois quando se decidiu pelo pai, que também ele fora um pedaço de homem, como se dizia então. Ela bonita, ele boa estampa, deu no que deu, mas, pensavam os dois, por que tanto exagero? A mãe tirava da reta: — Minha, só, não! Meio a meio, seu Oscar, meio a meio! — Mas o nome foi você quem deu! Divina tinha adoração pelo próprio nome. Olhava com desdém àqueles que perguntavam pelo seu nome quando a conheciam, pois jamais imaginara outro tão de acordo com a dona. E se alguma amiga tomava a liberdade de usar um simples “Di” era corrigida na hora: — “Di”, não, por favor. Detesto apelidos. Divina. Apenas Divina. Ia por seus dezessete anos quando recebeu o primeiro convite para estrelar um comercial de sabonete. Depois vieram outros convites: creme dental, xampus, linhas de maquiagem. Uma grana. Foram todos dispensados sem falsa modéstia e algum sorriso de enfado. Até chegar o convite inevitável: — O Boni, da Globo, convidou-a para um teste. Atriz principal da próxima novela das oito. — Teste??? — Bem... Talvez o teste possa ser dispensado... A senhora aceita? — Não. — O ator principal será o Fagundes. — “Fá” quem? Gostava de contar essa história. De ver as caras de incredulidade e espanto. E arrematava: — Com tanta mocinha bonita por aí, por que logo eu? Não é exagero. Divina era mesmo deslumbrante. Certa vez, numa festa elegante, talvez tocada por uma taça a mais de champanhe, talvez por spleen, chegou-se junto ao piano e cantou alguns clássicos do Cole Porter. Quem estava lá jura que nunca igual. Nem Elis. Foi no trabalho. Um súbito desejo de espirrar. Coisa comum. Como sempre, Divina tapou as narinas com a mão, para que o espirro não fosse ouvido. Um dos conselhos do pai: — Não faça isso, o aumento da pressão intra-craniana pode provocar um aneurisma cerebral. Bingo! Divina caiu da cadeira, inconsciente. Todos acorreram. Logo um filete de sangue começou a sair pelo ouvido esquerdo. Sangue também pelo nariz. A fila dobrava a esquina. Todos para vê-la pela última vez. Um transeunte que passava pelo local quis saber quem tinha morrido. Tem sempre um gaiato por perto: — A Divina Comédia! |