MOINHOS DE TEMPO
Jorge Gomes da Silva

O velho Joaquim Merceeiro encostou-se ao muro branco diante do seu estabelecimento. Tinha vista para a praça central, que fôra a única nos dias em que a jovem cidade era aldeia e ninguém lhe fazia concorrência ao negócio num raio de dezenas de quilómetros.

Agora, era um burburinho todo o dia. Gente para lá, gente para cá, gente sem outro sítio para onde ir. Reuniam-se ali aos magotes, como os pombos, e o velho Joaquim gostava de ficar ali a vê-los correrem a vida num virote enquanto a povoação crescia em redor daquela praça.

Os dias bons para o comércio, recordava, costumavam ser dias assim. Com a aldeia em plena festa, honra a Nossa Senhora das Misericórdias Divinas, população de todo o concelho ali congregada para generosa festarola. E era o Joaquim, pois claro, quem fornecia os enchidos e quase tudo quanto se comia nessas ocasiões festivas. Um festim para a caixa registadora, de manípulos cromados e manivela a rigor, que insistia manter em destaque, troféu, como a mais lustrosa manifestação da sua vontade férrea de parar o tempo no interior da merceeria.

Até no exterior conseguiria esse milagre, manter uma velha casa térrea em pedra, entalada, teimosa e patética, entre os seis pisos de dois expoentes da mais desastrada arquitectura paisagística. E em volta da praça, todos os edifícios cresciam em altura, modernos, escondiam ao Joaquim as hortas que dantes conseguia ver e agora nem existiam, convertidas em quarteirões carregados de clientela potencial.

Assim era, no princípio, quando a vila em expansão começara a acolher as primeiras evidências do êxodo rural. Chegavam os rapazolas primeiro, a apalparem terreno. Vagueavam pela praça em busca de organização para as ideias até surgir do nada uma entidade empregadora. Marçanos, serventes e aprendizes de qualquer coisa, governavam a vida e ainda sobrava o bastante para atenuarem as privações dos que ficavam na terra.

Depois, apareciam os irmãos e irmãs, primos e amigos, quartos alugados e gastos controlados ao tostão.

Dias dourados para a Merceeria Victória, o ponto de referência da vila em géneros alimentares e outras conveniências, como dizia na tabuleta carcomida que prendera por arames num candeeiro da rua, mais de cinquenta anos atrás. Publicidade que bastava para acabar com as veleidades dos merceeiros arrivistas, amadores. Vinham ao cheiro, dois ou três, instalavam chafaricas num canto discreto. Depois, baixavam os preços e obrigavam o senhor Joaquim a acompanhar essa incompreensível tendência para sacrificar as margens de lucro. Uma estupidez, coisa de gaiatos. Mas seria a única vez que o Joaquim aceitaria publicitar a casa que, afirmava, se impunha por si, que a antiguidade é um posto. E a tabuleta ficaria referenciada como "indicador de localização" nos registos autárquicos da época, o que inviabilizaria mais tarde todas as iniciativas do Município para a retirarem do local. Nem o candeeiro Joaquim permitiria que substituíssem, o único desse modelo que restaria na praça, incólume aos progressos fantásticos da iluminação urbana que lhe tentaram impingir.

Era teimoso, o Joaquim. Agarrava-se às coisas de que gostava com a firmeza de um mexilhão, cristalizava a essência dos momentos em que se sentia mais feliz, tentava perpetuar nos objectos e na postura a vida de que gostava e não admitia a evolução como pretexto para a mais ligeira mexida no seu mundo especial.

E a merceeria era a sua cara chapada, antiquada nos moldes, imutável na decoração. Durante o dia, o merceeiro vestia a farda, uma velha bata azul desbotada. E ao domingo, quando saía, só vestia a roupa à medida que lhe fazia o seu amigo Toino, proprietário da alfaiataria. Sempre o mesmo conjunto, calça, camisa, colete e casaco. E um chapéu com dignidade, como ele sempre referia.

Sempre a mesma encomenda, na forma e na cor. Cinzentão.

Defronte da fachada, uma arrastadeira orgulhosa definhava por falta de peças e corrosão natural. O Joaquim, velhote, desistira nos anos oitenta da respectiva manutenção. Nem assim permitiu que lhe sugerissem a remoção do destroço para uma garagem municipal, gratuita, à sua disposição. Aquela relíquia, como as outras de que recusava abdicar, não era apenas um objecto, fazia parte do Joaquim. Foram deixando ficar...

E ele insistia em abrir a porta todos os dias, às oito e cinquenta e nove, para honrar a tradição. Ninguém abria mais cedo do que o senhor Joaquim, fanático cultivador da pontualidade, um dos critérios que lhe haviam transmitido como sagrados para o comerciante da escola clássica.
Também as manhas, próprias do ofício, indispensáveis para rentabilizar o negócio, eram fruto dessa transmissão de saber precioso que os mais novos insistiam em ignorar. A vizinhança não tardaria a notar as diferenças no peso de um quilo nos embrulhos da Victória, relativamente às restantes. Problema das balanças, esses modelos modernos, descalibram com o peso de um reles melão. Muito sensíveis e imprecisas, argumentava ainda, exibindo nas medidas de lata as marcas oficiais da verificação anual. Para inglês ver, que a verificação morria esquecida nas traseiras, em repasto com tudo de bom para gáudio dos fiscais.

Dava a volta a tudo, o Joaquim. Ultrapassara a perda da Donzília, sua mulher e infatigável trabalhadora, cheia de paciência para o aturar. A que faltaria aos filhos, mais tarde, quando mudaram para longe e raramente voltariam para o visitar. Também com isso ele podia.

Mas o tempo avançava e enfraquecia a resistência do velho mercador. À sua tenacidade em permanente desgaste correspondiam investidas cada vez mais poderosas do progresso que o esmagava, de mansinho, com armas desiguais.

Para a Merceeria Victória, estava decretado um fim. Do lado oposto da praça, os tapumes de uma obra imponente anunciavam aos pedestres a inauguração próxima do primeiro hipermercado da cidade.

O tempo galgava as barreiras com o vigor de uma enxurrada, impunha regras suas a quantas lhe tentavam opôr. Farto de esperar, o tempo enlouquecia e assumia uma personalidade diferente, muito arrogante, mais fria. Mas o velho Joaquim, debruçado sobre o muro branco, já conhecia nome e rosto do vilão que desdenhara acompanhar. Chamavam-lhe progresso. Não o temia.

Teimoso, desviou o olhar para a tabuleta empalecida e cogitou. Minutos mais tarde, no cimo do escadote que encostara no candeeiro de estimação, Joaquim Merceeiro lançou à cidade um sorriso de desafio. E mergulhou na lata de tinta esmaltada, referência 304, tom forte e garrido, a sua varinha de condão particular.

Ninguém o convenceria da futilidade de tal resistência, tamanha se revelava a sua fé.

A magia acontecia colorida na paleta dos sonhos daquele velho lutador. E no reflexo do sol que a tabuleta renovada voltou a espalhar pela praça, em borrifos de orgulho, todos os dias, a meio da manhã. 

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