LINHAS TORTAS
Erazê Martinho
Radamés não aparentava a idade que tinha: trinta e cinco anos, embora ninguém lhe desse menos de setenta. Nascido prematuro, sempre tivera compleição frágil. Disenteria, sarampo, catapora e uma incurável tosse garantiram que ele chegasse à idade adulta com a aparência de septuagenário. O andar capenga era por conta das calosidades na sola dos dois pés. Pra calvície não havia explicação.
A única coisa que impedia alguém maldoso de dizer que Deus se esquecera de Radamés eram seus olhos celestialmente azuis, herdados do pai que não conhecera, um marinheiro escandinavo, cujas sonantes moedas quebraram a resistência da mulata Angelina, exuberante, de carnes rijas e um sorriso que deve ter inspirado seu nome - morta durante o parto.
Intrigava a todos como foi possível um marujo alto, forte, de cabelos loiros e os tais olhos azuis, ao engravidar uma mulher linda como Angelina, ter gerado Radamés. Ainda assim, jamais alguém acreditou que os horrores da morte de Angelina e da aparência do bebê se devessem ao fato da concepção ter acontecido numa Sexta-feira Santa, no exato momento em que a procissão passava na frente do bordel e quando todas as mulheres da casa, exceto Angelina, claro, choravam a dor da Virgem Mãe e do Filho crucificado.
Fosse pelo que fosse, Radamés era realmente uma pessoa muito feia e, em conseqüência, muito tímida. Consolava-se com a idéia de que nada mais de ruim lhe aconteceria, além da condenação ao isolamento, de onde nasceu o hábito da leitura. Ele lia tudo quanto lhe caísse à mão. O velho jornaleiro, dono da banca que ficava vizinha à pensão onde vivia o feioso, matava graciosamente sua fome de leitura.
Mas, como não poderia deixar de ser, o hábito, associado à má iluminação do quarto onde passava a maior parte do dia, causou, no início, aquilo que o oftalmologista definiu como vista cansada, depois como miopia: 4,5 graus de miopia. A solução: óculos. Não poderia ser lente de contato? Não, não era caso de lente de contato, teria mesmo que ser óculos.
Receita em punho, Radamés voltou ao quarto da pensão, mirou-se demoradamente no espelho, seus olhos azuis encheram-se de lágrimas, enxugou-as com as costas da mão, saiu à rua e atirou-se sob as rodas do pequeno caminhão que acabara de entregar jornais e revistas na banca ali da frente.
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