VAIDADE
Claudio Alecrim Costa

Como poderia justificar, para mim mesmo, aquele desejo incontido de me tornar um homem atraente e bonito pelo qual todas as mulheres suspirassem?

Havia uma barreira psicológica, talvez um muro construído dentro de minha cabeça, em decorrência das conversas sem fim travadas no boteco do Amaro, onde costumava encontrar a turma. Lá, ficara estabelecido por decreto que só existia uma regra para masculinidade, à qual todas as outras regras ficavam submetidas: homem que é homem não tem esse negócio de ficar se olhando muito em espelho não. Se olhar muito, é fruta. Estatuto fundamental. De bar.

Por isso, naquele dia, antes de me escafeder do salão de beleza, tomei todo cuidado possível, afinal, eu nunca havia burlado o estatuto e hoje fora lavado, enxaguado, polido, lustrado e esmaltado: me sentia um carro zero e decente. Corte de cabelo de vanguarda, unhas bem tratadas, limpeza de pele, hidratação, luzes, enfim, tudo que tinha direito. Ou achava que tinha. 

Subvertera apenas uma regra do Estatuto da Masculinidade do bar do Amaro: disse sim à vaidade. E era o mesmo que dizer alô-alô boiolice, segundo a lei. Concordemos: eu era um embuste! Freqüentava um bar com a turma e defendia suas leis pra depois violar todas freqüentando um salão de beleza. Assim convencido, fui tratando de sair de fininho daquele recinto, repleto de produtos atentatórios ao pudor masculino... Reparei bem pra todos os lados. Conferi todos os olhares, os transeuntes e os ambulantes. Ninguém me reconhecera. Até agora não fora flagrado naquela situação vexatória, em franca ode ao único pecado capital abominado pelos indivíduos masculinos - a vaidade. 

De repente, em minha distração paranóica, esbarrei no Rodrigão, assíduo freqüentador do boteco do Amaro e amigo de infância:

- Afonso!

- Tudo bem?

- O que houve contigo? Não vai me dizer que...

- Eu explico!

- Deixa ver tua mão rapaz...

- Só dei uma ajeitada... Minhas unhas estavam meio..

- Tu andas pintando as unhas, Afonso?

Nesse momento, pra completar o coro, chega o Sérgio “Cuíca”:

- Falaí, gente! Tem cervejinha hoje?

- Nem te falo. Olha só pro Afonso, ô Cuíca...

- Que é que há, Rodrigão?

- O Afonso anda pintando as unhas não ta vendo?!

- Peraê... Eu só passei esmalte incolor que a manicure chamou “de base”...

- JIBASE??? Que é que é isso, meu irmão? Quem pinta “JIBASE” já é veado ou tá pra ser! – ensinou, no grito, o Cuíca.

- Não te falei? – reforçava o Rodrigão.

- Não deixei de ser homem por causa disso!

Risos...

- Eu juro!

- Ah... ela até jura! 

- Olha só o cabelo da “jurada”...

Risadas...

- Vocês sabem que eu me garanto!

- Teus amigos aqui também, só que esse troço daí no cabelo e pintar unhas “JIBASE” homem não encara não - garantiam às gargalhadas o Cuíca e o Rodrigão.

- Isso daqui são luzes!

- São o quê? – admirou-se Rodrigão, indignado.

- Não dá pra explicar... Preciso ir. O bar fica pra um outro dia, outra hora...

- Vais encontrar alguém especial? – perguntou o Cuíca, cheio de ginga e de malícia, impondo-se do alto de 1,90m de altura que lhe conferia a garantia de um relógio suíço.

- Isso não é da sua conta.

Era dia de Juízo Final particular. Deus pedira as contas e a essa altura do campeonato já estava longe, descansando satisfeito dessas eternas macaquices entre homens. Agora, já um terceiro se avizinhava... Era o Beto “Boca” que mal chegara e já me atormentava:

- E aí, turma! Vamos tomar aquela lourinha?

- Precisa não... Tem uma bem aqui ó! – me apontava o Cuíca, sem qualquer misericórdia.

Gargalhadas.

- Afonso, esse teu cabelo está tão iluminado quanto aqueles galetos cheios de óleo da porta do botequim...

Mais risos...

- Pra vocês que ficam, tchau. Tenho de ir. Qualquer dia a gente se vê por aí. – disse eu me escafedendo de ser prensado agora por três. 

- Com certeza a gente se vê por aí... Louras chamam muito atenção da gente...

Ao som das gargalhadas, deixei aqueles três idiotas e apressei o passo para encontrar Alice. Não seria difícil fazê-la entender a importância da vaidade no relacionamento nem como eu me preparara como um presente só para ela.

Ela estava me esperando sob um vestido justo que descia escorregadio colado aos quadris largos e estancava ante os joelhos, deixando-lhe pernas bem torneadas à mostra e prolongando-lhes a silhueta alva tal qual colunas gregas. Iluminado que era, seu sorriso se via de longe. Os cabelos fartos emolduravam-lhe o rosto infantil e cobriam-lhe os seios, ampliando minha eterna e insatisfeita curiosidade. 

- Oi, Alice!

- Oi, Afonso! O que é isso no teu cabelo?

- “Isso” Alice são luzes, xongas! Luzes, entendeu? Você devia saber melhor do que eu!

- Ta... mas você não acha que exagerou um pouquinho não?

- Quando você pintou seus cabelos de rosa choque eu não falei nada!

- Mas é que...

- É que você é uma mulher?! É isso que você ia falar?!

- Não, eu só...

- Não digo eu! Pois olhe! Vou arrancar todas as unhas e depois raspar meu rosto até esfolar e ficar como um monstro sexy!

- Não está ruim assim, Afonso, mas...

- Não! Não fale mais nada! Apenas finja que esse dia não aconteceu! Dê meia volta e esqueça... Ande, caminhe e procure se enfurecer por eu não ter aparecido ainda... Vamos mudar o rumo dessa história...

Sem esperar a reação de Alice, segui em frente escutando sua voz, cada vez mais distante, me pedindo que esperasse...

Em casa, desiludido e exausto, me dirigi até o espelho grande do corredor e sem pudor, comecei a me examinar cuidadosamente... Havia algo de errado com o cabelo, mas não estava nada mal... Espiei uma vez, e mais duas vezes... Meu reflexo iluminado naquele espelho me reconhecia e então, pra ele e só pra ele, aquela imagem nítida de mim mesmo fez sua frívola e corajosa confissão: cara você hoje está demais!

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