VAI... IDADE
Al
Estava sentada na poltrona velha que dava para o corredor. Jazia. A manga da blusa desbeiçava-se. Era lã, era verde e quase escondia a mão gasta, que pousava levemente sobre a mão dele, já imaginária, remanescente de um tempo antigo. Olhava a fotografia amarelecida e pensava: “Vai... idade, vai”. Aos 84 anos, queria que o tempo corresse e levasse embora, junto com o corpo, as lembranças doídas da mente. Corroía o silêncio da velhice em contraste com a juventude e os tempos festivos do marido, que inventava motivos de festa sem o menor motivo. A casa toda desmoronava, acompanhando o estado de espírito sombrio da proprietária. As pratas foram escurecendo com a falta de cuidado, assim como ela ia se apagando no eco da casa vazia. As cores soavam em preto-e-branco.
Não se olhava no espelho há três anos, desde o funeral do marido. Na véspera, enquanto se arrumava para o velório, foi a última vez que se olhou. Os corretivos já não escondiam as rugas em torno dos olhos, os cabelos ressecados. A velhice tinha chegado. Jurou nunca mais mostrar seu rosto para si mesma. E o nunca foi tomando conta de sua vontade. Nunca mais se olhou no espelho, nunca mais arrumou a cama, nunca mais sorriu, nunca mais usou a vitrola, nunca mais trocou as chinelas velhas. A contragosto, tomava banho, por insistência dos filhos.
Foi linda na juventude, adornada pelos brocados de ouro, todos presentes do pai. Seu andar lascivo de mulher-menina despertava loucuras nos homens das outras e inveja nas mulheres dos outros. Tirou a sorte de loteria premiada quando encontrou o homem de sua vida aos 15 anos. Casou-se e teve dois filhos homens, “varões”, como dizia o falecido. Dedicou-se a cuidar dos homens da casa e, irreparavelmente, foi deixando pelo caminho sua vaidade de mulher. Guardou os anéis de ouro no porta-jóias, as mechas onduladas dos cabelos num coque, o corpo esbelto num vestido longo. Debruçou-se sobre o tanque, sobre a cama, sobre a mesa, sobre o parapeito da janela para ver a vida passar.
Passados mais de sessenta anos, trocou a janela pela cadeira. Continuava ver a vida passar, dessa vez torcendo para que passasse logo. Não tinha mais os ternos do marido para engomar, os filhos não estavam mais ao quarto ao lado esperando o toque suave a chamar de manhã. Estava sozinha e inalava o cheiro de flores mortas todas as vezes que passava em frente ao quarto matrimonial. Nos raros passos que dava pela casa, levava consigo o mini-calendário. Contava os dias nele, mas não sabia que o ano estava atrasado. Para ela não fazia diferença. Sua vida também andava atrasada nos últimas décadas.
Flutuava na imensidão de sua tristeza, entre boas recordações da família. Dela mesma, nada de bom conseguia se lembrar. Fez seu pouso de morte no dia em que entrou no banheiro e levou um susto com a imagem refletida no espelho atrás da porta. Foi pegar a toalha, esqueceu-se do espelho lá guardado. Virou o rosto da primeira vez, mas não pôde evitar olhar a segunda. A ferrugem do tempo, marcada em seus linhas e contornos, percorreu as veias e chegou certeira ao coração velho e cansado. Antes da dor fulminante, ainda conseguiu arrancar o espelho do prego e jogá-lo ao chão. Quebraram em pedacinhos incontáveis. O espelho e o coração.
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