OPACO DESEJO
Lula Moura
A luz do dia já se fazia presente, e Yan não conseguia retirar da cabeça o rosto dela refletido à sua frente. Nem tampouco o que havia do lado de cá do espelho: um corpo feminino nu, de costas, de quatro, de curvas morenas, com lábios e olhar respirando convite ao desejo. Uma fêmea, no cio, falseando uma onça, fingindo rugido. Indo. Os cabelos pretos pediam carinho e davam perfume, e o brinco era um mero detalhe. Uma noite e tanto, aquela... O cigarro acabou e, apesar de toda lembrança do prazer, um certo vazio existia ali, do lado direito da sua mente que, opaco, não refletia mais nada. Já havia perdido a memória futura sem se dar conta da contradição do pensamento.
O café não curara a pequena ressaca. Precisava esquecer o prazer e se concentrar, para lembrar suas origens e seu destino. Para onde iria agora? A imagem do mestre fazia com que Yan não se deixasse levar pelo desespero (algo de bom restava dos tempos de monastério). E se o norte havia fugido, ao menos ficara o telefone da moça. Pista inefável e animadora. Mas, afinal, como fora parar ali?
Sacola nas costas, Yan foi até um telefone público e ligou para a moça. Ficou desanimado ao perceber que ela tinha lhe conhecido ontem mesmo. Ela perguntou se ele desejava repetir a festa hoje, mas ele não topou desta vez. A paciência diminuíra e pensamentos torvos chegavam-lhe à mente. Barba passada, seu espelho já não lhe devolvia a imagem. Yan foi ter com seu nada. Sua vida carecia agora de um reencontro com sua imagem, sua essência. Por hora, conteria a indecência saudável. O prazer podia esperar. Precisava descansar, e resolveu gastar os últimos euros com uma estadia confortável num “três estrelas” da Alameda Principal.
O descanso lhe trouxe energia, mas não a memória de volta. Yan resolveu caminhar por aí. Quem sabe encontraria, ao acaso, a resposta. Comprou mais cigarros e a imagem do rosto dela refletido à sua frente insistia novamente. Talvez um sinal, pensara. Talvez somente o tesão, vidrado que era naquela mulher. Sua imaginação levou um susto ! Um cão saltou à sua frente e a mente medrou. Parado diante da fera, ficou. O segundo passou, o minuto não. E, por detrás da sua cena, a esfera da terra fazia virar a cabeça: -Droga, esqueça ! Não vou lembrar. <murmurou>.
O cão se fora, mas o ninho dos deuses ainda estava distante, pensou. Por detrás desse opaco desejo estaria a resposta, talvez. O controle emocional era o desafio que o fez desistir de tudo, deixando nas suas pegadas a distancia do templo. E já fazia tempo que saíra de sua cidade natal, liberto das amarras impostas, liberto das regras. Hoje porém já não saberia dizer se a decisão foi correta, se está em outro ponto a resposta de tudo, ou se está dentro de si. Mas era preciso viver o mundo cá fora. Experimentar, beber o vinho e aprender a curar os efeitos. Já tendo vivido muitas e boas, Yan buscava em pensamento uma solução, uma inspiração. Onde quero chegar? Quero chegar?
A noite foi quem chegou novamente, e trouxe a lua cheia, linda e sedutora como a morena da noite anterior. As respostas não surgiram, e o vazio sugeriu à sua mente a lembrança daquela imagem, novamente: o rosto dela refletido no espelho a sua frente. Um corpo feminino nu, de costas, de quatro, de curvas morenas, com lábios e olhar respirando convite ao desejo. UM beijo, uma fêmea, uma onça, fingindo rugido. Cansado de mais um dia de buscas internas e, seduzido pela arrebatadora lembrança, resolveu mudar de idéia, ceder ao opaco desejo enquanto a luz do próximo dia não vinha. Sua essência iria esperar mais um pouco... E ligou novamente para a Morena, cujo brinco era um mero detalhe...
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