O REFLEXO
Daisy Melo
Zenaide acordou tarde, lá por volta das 10 horas. Algumas sombras ainda escondiam-se da réstia de luz que escapava por entre as dobras da cortina. Levantou num pulo e abriu a janela. O sol entrou e iluminou tudo como um soco no estômago. Voltou para cama, cobriu a cabeça com o lençol de florzinhas amarelas e ficou pensando no dia que surgia à sua frente: praia, compras, lavar o cabelo, verificar como está a depilação, fazer as unhas... dinheiro... dinheiro era o que a preocupava. Tinha que mandar dinheiro para Carlinhos em Salvador. D. Neném escreveu reclamando e pedindo mais: precisava comprar material escolar, uniforme novo. "Carlinhos cresceu. Está enorme! Você não vai reconhecer!". Carlinhos... isso era o que mais doía. Como sentia falta. Há quanto tempo não via o menino? Dois anos desde a última vez que foi visitá-lo. Planejava trazê-lo nas férias em janeiro. Ficaria o mês inteiro matando as saudades do filho. O dia todo em passeios, brincadeiras, sorvetes e presentes. Sem trabalhar.
Dez anos. Como o tempo passa... parece que foi ontem que chegou ao Rio de Janeiro. Assustada e com os cabelos compridos presos num rabo de cavalo. A maleta pequena guardava tudo o que possuía na vida. E trazia as recomendações de D. Neném: que tivesse cuidado, o Rio era enorme e perigoso, não era fácil vencer na cidade grande. Aquela coisa de sempre. Mas ela tinha vencido.
Tomou coragem e levantou-se. Enquanto esquentava a água do café, arrumou a cama, ajeitou as almofadas na cabeceira, deu um jeito rápido na sala. Na área de serviço minúscula onde só cabia o tanque, alcançou o biquíni pendurado na corda. Tirou a camisola, a calcinha e observou seu corpo nu no espelho grande ao lado da cama.
Passou demoradamente as mãos pela barriga durinha. Também, tanta abdominal... virou de lado: os seios ainda estavam empinados, mas não por muito tempo. Planejava colocar silicone no próximo ano, se Deus quiser. Um pouco de celulite na bunda mas isso não era um grande problema. Chegou bem perto do espelho e procurou cravos e espinhas no rosto moreno de sol. Cacete! Um cravo enorme bem na ponta do nariz. Espremeu com cuidado, lavou o rosto e passou uma solução alcoólica. Vai ficar marcado, droga! Mas nada que uma boa maquiagem não disfarce. Colocou o biquíni, a saída de praia branca rendada, contou o dinheiro para a água de coco e guardou dentro da bolsa grande de palha. Não esqueceu o baldinho vermelho. Tinha pavor de entrar na água. O mar em Copacabana, pelo menos ali em frente é muito forte. As ondas costumam quebrar com violência. Não é como o mar da Bahia, tranqüilo e morno. Bom de pescar.
Uma nuvem passou pelo seu rosto quando lembrou do mar de Salvador. Viu refletida no espelho a menina de grandes tranças, vestido de chita, as pernas grossas, já com corpo de moça. Reconheceu no reflexo, Moreno, o pescador mais bonito e o mais safado das redondezas. Sentiu uma pontada fina no peito como borboletas voando dentro de uma garrafa quando lembrou dos olhos de Moreno, da boca, dos beijos. Do dorso nu e forte do rapaz. Doeu no ventre relembrar as quedas e os gemidos por detrás do areal da praia, o amor gostoso e molhado com cheiro de sal. Um dia Moreno foi pescar e não voltou mais. Soube depois que tinha se enrabichado por uma dona lá para as bandas de Porto Seguro. Mas aí já estava de barriga, havia levado uma surra do pai também pescador e sido expulsa de casa. Dias depois já tinha gasto todo o dinheiro que a mãe, D. Cotinha, lhe deu escondido entre roupas, choros e abraços. Quando já estava quase mendigando, encontrou D. Neném que comprava peixe no mercado. A mulher, devota do Senhor do Bonfim, tão boa, uma santa, tomou conta dela e depois de Carlinhos. Tratava-o como a um neto. Carlinhos... sacudiu o pensamento triste, arrumou o cabelo num coque, tomou uma xícara de café bem forte e saiu rumo ao mar.
- Bom dia D. Zenaide, saudou Seu Libório, o porteiro, que por acaso, varria a calçada em frente ao prédio. Vai pegar a sua praiazinha? Ela abriu um sorriso grande e franco:
- Pois é Seu Libório, ainda dá para aproveitar o sol. Olhou para o céu sem nuvens. Entrou água hoje? Veja lá, hein? Não posso ficar sem tomar meu banho. Ó xente — carregou no sotaque — quando é que vão resolver esse problema da caixa d’água? Assim não dá para ficar Seu Libório. Um prédio tão grande como esse, com tantas famílias, sem água?
- Tem razão, D. Zenaide. Mas o síndico não resolve. O que a gente pode fazer?
- Afe Maria! Assim não tem jeito... sorriu.
Ao chegar à praia, colocou sua cadeira perto da barraca da Jô, uma negona forte, que fornecia bebidas para o pessoal e dirigia o negócio com mão de ferro. Mandava e desmandava em Tião, o marido baixinho que não queria nada com o trabalho pesado. Andava de um lado para o outro na areia, conversando com um, brincando com o outro. Mas uma coisa não se podia negar: ele era uma espécie de relações públicas do empreendimento. Com o sorriso aberto e sem os dentes da frente, conquistava cada dia mais clientes. Jeitão de carioca mesmo, pensou a moça, de malandro. Ela tinha conta lá e sempre tomava uma cervejinha gelada quando estava de folga. Hoje não era o caso. Hoje não podia beber.
Besuntou com calma o corpo com óleo de bronzear e ficou se tostando ao sol. Àquela hora já não havia crianças pequenas na praia e grupinhos de jovens conversavam sentados na areia. As ondas batiam calmamente — inacreditável! — e algumas pessoas nadavam. Os salva-vidas fortes e bonitões observavam atentos o mar entre uma olhada e outra nas bundas e peitos das mocinhas.
Duas horas depois estava no supermercado escolhendo frutas, frango e alguns legumes. As frutas nem chegavam ao pé das da Bahia. Ia cozinhar para o almoço, estava morrendo de vontade de caruru, meu bom... riu. Zenaide sabia cozinhar bem. Quando ficasse velha não ia morrer de fome. Pensando bem: Deus me livre! Ia arrumar a vida até lá. Parar de trabalhar, ficar de dondoca. Trazer Carlinhos para morar definitivamente com ela. Carlinhos...
Depois do almoço e de um bom banho (tinha água graças a Deus) descansou um pouco. À tardinha, escovou bem os cabelos muito louros a custa de trabalho e descolorante, passou hidratante minuciosamente no corpo inteiro e fez as unhas experimentando uma cor nova de esmalte, um vermelho arroxeado que estava na última moda.
Enquanto o esperava o telefone tocar, escolheu a roupa. Colocou no CD Player novo que ainda nem acabara de pagar, um axé-music e rebolava nos passos da dança da garrafa com movimentos bem sensuais. O espelho, pouco a pouco, presenciava perplexo a transformação: o vestido preto colado ao corpo favorecia as ancas grandes. O sapato de pulseirinha no tornozelo, brilhava todo com os strass colados do lado. O cabelo num coque alto deixava soltas algumas mechas displicentes enquanto Zell colocava os cílios postiços.
Com uma ultima olhada, Zell pegou a bolsa de oncinha e jogou um beijo estalado, de batom, para sua imagem: — é hoje, garota, que você arruma um gringo rico. Bateu a porta, envolta em uma nuvem de perfume mas deixou desenhado no espelho atônito, o reflexo da menina magricela de tranças e vestido de chita, o olhar perdido lá longe no fim do mar delineia jangadas e barcos de pesca, sente borboletas na barriga e suspira aguardando por Moreno.
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