GÊMEO DA GUARDA
Beto Muniz

 
 

Alberto sabe dos pensamentos de Humberto.

Humberto foi criado em Minas Gerais. No entanto poderia ter sido criado em Goiás, Mato Grosso ou Sul da Bahia, não faria diferença. Seus pesadelos seriam os mesmos em qualquer região do Brasil, e se eu não estivesse atrelado a um certo pudor de exagerar, facilmente abriria as porteiras do mundo dizendo que suas angústias seriam as mesmas em português, inglês, árabe ou japonês. E ainda iria além, se não tivesse receio de ser acusado de invencionices, porém, mesmo que quisesse dar um colorido nas visagens do moço, não faria diferença, pois os pesadelos, bem como os sonhos, não tem fronteira, idioma ou cor e isso todo mundo está careca de saber. Pois bem, a perturbação noturna de Humberto era sempre a mesma coisa: um filme passando por detrás duma cortina de névoas, mostrando vestígios acinzentados duma aparição, um demônio minúsculo como um menino de dois anos, assumindo suas formas e roubando seu reflexo. Era Alberto, o irmão gêmeo que nascera vinte e cinco minutos antes e morreu dias depois. Virou lembrança.

Humberto sobreviveu! Teve a infelicidade de vingar, do pulmão ser teimoso e ficar lutando pra respirar até o corpo inteiro reagir e sobreviver. Sorte besta. Podia ter trocado de lugar com o irmão e nascido primeiro, mas não, cedeu a vez pro outro que foi levado depressa pra junto de Deus. Foi ser anjinho - como repetia constantemente a mãe - e restou a Humberto ficar sofrendo fome, verme e calor num canto qualquer que bem poderia ser na Bahia, em Goiás ou Mato Grosso.

Quando começou a andar era um barrigudinho tão desenxabido e catarrento que só as varejeiras se interessavam por ele. A mãe mal cuidava dos filhos vivos, mesmo assim arrumava jeito e tempo para lamentar a ausência do outro. O anjinho. Desgraça de gente que arrebenta o mundo de tanto fazer filhos! Um engatinhando, comendo terra, e o bucho da mãe já crescendo com outra cria. Só assim mesmo pra manter a barriga cheia. As pelancas se esticando todas novamente a cada ano. As tetas não tinham descanso. O caçula sempre desmamado na marra, mas o leite continuava jorrando, sem intervalo, calando o pranto do recém nascido. Se pelo menos a mãe tivesse no bucho um outro tipo de semente, daquelas que o pai plantasse e precisasse de água pra germinar. Ou se fosse permitido ralear feito a plantação de algodão! Tirava o excesso e deixava crescer dois por touceira. A vida da gente bem poderia ser uma touceira raleada, e a família seria o pai, a mãe e dois ou três irmãos bem cuidados, parrudos! E já que pode querer, ninguém para atazanar as lembranças da mãe. Ninguém lembrado como se fosse anjo. Anjo mesmo seria o que vingou e a mãe limpa o catarro várias vezes ao dia pra não juntar remela com ovo de varejeira. Mas qual? Mãe e pai deitam cedo e não tem outra coisa pra fazer. Vai dizer que dormem a noite toda? Dormissem mesmo e o cômodo da casa não estava apinhado de filhos. E nada de pensar no bucho que não agüenta mais esse estica, afrouxa, estica, afrouxa, estica... Uma hora arrebenta! Ainda mais com essa mania de parir dupla.

Da primeira vez vieram Humberto e Alberto. Ou Alberto e Humberto, como ainda corrige a mãe. Na seqüência Angélica e Angelina. As duas não ficaram neste mundo tempo suficiente para ver a cor do céu. Sem nuvem! Que elas nasceram na época em que mais faltou chuva. Angélica nem abriu os olhos, só deu uma chorada, coisa pouca, mais era um lamento! Decerto por ter vindo a este mundo, e Deus a levou de volta em menos de meia hora. Já Angelina nem teve tempo de chorar nesta terra. O Pai do céu é rápido para essas coisas, pois quanto menos deixa contaminar com o mundo de melhor cepa é o anjinho. Besta esse controle de qualidade, pois mesmo se fosse levado um ano depois do irmão gêmeo, o Humberto podia jurar pela alma da mãe e do pai mortinhos que não lembraria nadica de nada aqui da terra. Até as coisas lembradas ele faria questão de dizer que esqueceu! Coisa besta ter sobrevivido. Ainda mais com o encargo que a mãe deu pro defuntinho: anjinho da guarda. Cresceu sonhando com o irmão lhe protegendo. Sonhou tantas vezes que até virou pesadelo.

De tanto ouvir a ladainha da mãe, o gêmeo acabou se empoleirando, feito um garnizé, na cabeceira da cama. Durante o dia sumia e o Humberto ficava abandonado pelos cantos, se queimando em bituca de cigarros que o pai jogava no terreiro, em brasa que estalava e pulava do fogão, furando o pé em graveto, roendo terra, toco, erva venenosa. Sempre se ferindo sem amparo do irmão-da-guarda. Com o passar das dores foi pegando tento das coisas e evitava tudo que doía. Só o que não conseguia, por mais que tentasse, era evitar a fome, e nessas horas imaginava o gêmeo virado anjo com Deus a lhe botar pão e mel goela abaixo. Dormia com a barriga vazia estufada de verme e inveja. Na hora do sonho o irmão desgraçado vinha fazer pirraça. Empoleirado na cabeceira ele dizia que para seus anjinhos o Poderoso nunca deixava faltar água. Foi daí que o menino cismou: o melhor de ser anjo era na hora do calor. Humberto aqui na terra correndo pelado atrás de calango e o Alberto lá nas nuvens vestido todo de branco. Isso sem contar o par de asas. O irmão bem podia emprestar as asas nos dias em que o chão rachava de quente. Mas era sua sina queimar a sola do pé até ela engrossar e ficar igual a do pai. O pai era calado, não judiava, vez ou outra até lhe passava a mão na cabeça, o diabo era a mãe que nunca deixava ele esquecer que sobrevivera! Melhor fizeram Angelina e Angélica, nenhuma ficou pra recordar a outra e a mãe nem lembrava delas. Alberto não! Alberto fizera o favor de assombrar até a foto do irmão... Mas nisso a culpa é do padrinho que cismou em tirar foto do afilhado em frente ao espelho. Padrinho queria registrar a roupa branca que deu pro pagão virar cristão e queimou o flash sobre a cabeça do menino. Lado a lado, dois meninos, como se o gêmeo tivesse ressuscitado. A luz, maldita luz, formando uma auréola na cabeça do reflexo. A mãe passou a cultuar o acidente como uma prova de que o anjinho guardava o irmão.

Castigo de mãe pega: vai viver com um fardo desse, Humberto! Humberto viveu. A vida toda a foto de batismo lhe pesando nos ombros e a mãe fazendo altar de adoração ao irmão morto. Vai viver com um anjo na cacunda, Humberto! Humberto não queria nada disso, não queria o anjinho-irmão-da-guarda. Queria mesmo era ser o anjo. Queria estar longe da mãe, a louca, repetindo pra todo mundo que se Alberto não fosse anjinho, seria cuspido e escarrado o irmão vivo. A mãe glorificando e Humberto se maldizendo por não ter nascido primeiro e sido escolhido por Deus. Inveja danada! Maldito anjo roubando até mesmo o reflexo. Não podia ser o contrário? Podia. Podia sim, mas quis Deus que fosse desse jeito e quando Ele quer não adianta ter pensamentos contrários, isso Humberto sabe. Seu irmão-da-guarda também sabe. Todo mundo sabe!

 
 

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