GALERIA
Ana Terra

Um barulho estridente. No chão, vários pedaços do meu antigo espelho. Nem me pergunto à causa da queda. Vejo-me fragmentada. 

Lembranças chegam de mansinho. Vejo-me criança, experimentando um vestido novo que ganhei de aniversário. Adolescente com suas dores e sonhos. Adulta procurando sinais do tempo que ainda não existiam. Madura examinando o rosto como a adolescente. O sorriso. O rosto deformado de tanto chorar. Uma máscara de cera, sem qualquer expressão.

O velho espelho testemunhou minha vida. E agora está ali. Em cacos, deixando-me ver os meus pedaços.

Olhando com mais atenção, percebo que em cada pedaço há rostos, sensações, que um dia fizeram parte da minha vida. Como um filme ou uma galeria. Sinto uma saudade imensa. 

Você, todo desajeitado, pernas magras, nas margens de um rio. No seu rosto, a imagem da inocência e da ternura. Beijos tímidos. "Cantadas" infantis. Bochechas afogueadas. Você tentando me fazer mulher. Nós dois inexperientes. Percebi sua dificuldade em achar o meu caminho. Delicadamente coloquei você na porta da minha feminilidade. Com um meio sorriso, você descobriu os meus segredos. Sorrimos um para o outro. Compartilhamos o momento que mulher alguma esquece. Onde estará você agora? Conservou sua ternura?

E você? Minha primeira e talvez única paixão. Descobrimos todas as faces da loucura: dores, alegrias, ciúmes. Mas o dia chegou. Uma mala de couro surrada sob a cama. Suas mãos brancas pegando a alça e me dizendo: até qualquer hora. Hora? Uma das piores da minha vida. Tudo escureceu. Deitei na cama e durante muito tempo fiquei sentindo seus rastros e vestígios. Foram necessários vários anos para que seu cheiro almiscarado deixasse minha pele. Como se sente agora? Quais seus sonhos?

E você? Quando te conheci, estávamos numa terra estranha. Completamente sós e perdidos. Agarramo-nos como tábua de salvação em alto mar. Passávamos a tarde fazendo amor. Grudados, com medo de enfrentar o mundo solitário lá fora. A noite chegava e nem percebíamos. Você me amava com toda a delicadeza do mundo. Tentando criar suavidade naquela terra inóspita. Quando o cansaço chegava, você se deitava no meu peito e, com a voz muito baixa, contava-me seus sonhos e segredos. Será que conseguiu realiza-los?

E agora você. Que está tentando se esconder num caco debaixo do armário. Vem cá, meu menino vadio. Deixa-me ver seu sorriso safado mais uma vez. Até amor por telepatia nós conseguimos fazer, lembra? O meu dia só começava quando ouvia seus passos largos no corredor. O desejo era tão intenso que não sabíamos o que fazer com ele. Trêmulo, você veio até mim. Ao te abraçar, senti o seu arrepio. O tamanho de seu desejo. Seu coração batia acelerado. Encostava-me no seu peito para senti-lo. Com os lábios sem destino beijei seu corpo inteiro. Não lembro o que aconteceu em seguida. Devo ter partido com você para outros mundos. Ao retornar, você me esperava com seu sorriso especial. O que foi feito do seu sorriso? 

Você, criatura exótica, que me mostrou novas realidades. Novos sabores. Atos de amor terminados com suor e lágrimas que colavam nossos corpos. Corríamos de madrugada pela areia da praia, procurando o melhor ângulo para ver a Lua Cheia. Beijava seus lábios salgados e com gosto de maresia. Dormíamos fundidos. Um só ser. Ao acordar beijava todas as estrelas de suas costas. O céu amanhecia lilás. Falava-me de suas dores. Será que conseguiu enterrá-las?

Agora chegou a sua vez. Perdi muitas noites de sono com seus olhos ciganos no teto do quarto. Você me fez jogar fora a pouca lucidez que me restava.Vi seus olhos pela primeira vez num Posto de Gasolina. Tirei seus óculos escuros, os fios de sua juba rebelde e estremeci. Amava-nos num quarto de paredes de espelhos. Gostávamos de ver as estranhas esculturas que nossos corpos criavam nos atos de amor. Adorava ouvi-lo cantando baixinho no meu ouvido. Ainda sinto em meu rosto a carícia do seu. Os loucos desenhos que fazia nas minhas costas com suas unhas. Um dia você bateu suas macias asas e se foi. Para onde?

Você, homem formal. Olhar assustador. Chegou de mansinho também. Cheio de estratégias. Achava engraçado o seu jeito. Nunca dizia o que pensava. Um dia, por um descuido seu, vi sua alma e o desejo nasceu forte. Lembro de você ajoelhado entre minhas pernas invadindo-me com os olhos fechados e o rosto em prece. Fazia-me imaginar que consultava seu oráculo dentro de mim. Como estarão seus olhos agora? Encontrou as respostas que tanto procurava?

E você, minha louca fantasia? Fiz amor com você sem que soubesse. Beijei a ponta de todos os seus dedos. Desenhei seu rosto com minhas mãos. Senti seu cheiro. Seus olhos me assustaram. Pela primeira vez, fui eu quem partiu.

E você...? Não. Chega. Não quero estes cacos. No meu peito, uma dor nostálgica. Restam alguns. Não quero mais lembranças. Vou dormir.

Quem sabe, ao acordar, encontre um espelho novo na parede? Virgem. Que nada viu.

Peço aos cacos que desapareçam. A galeria está guardada na minha alma.

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