UMA NUVEM NO CÉU
AZUL
Regina de Souza
O tema “AZUL” gerou em mim uma vontade irresistível de discorrer sobre meus olhos, ouvidos, cérebro e corpo perfeitos. Que coisa mais séria, essa: nasci perfeita! E vocês que são perfeitos como eu, nem sempre se atém a esse fato, não é verdade? Sei que pecam comigo, quando não aproveitam a beleza que os sentidos intactos podem propiciar. Aposto que também são às vezes excessivamente exigentes e saem choramingando igualzinho a mim, quando encontram o mínimo obstáculo pela frente!
No entanto noto que - fora o preconceito - os portadores de deficiência com os quais convivo, vencem constantemente inúmeras barreiras arquitetônicas, operacionais e
físicas, sem choramingar.
Cegos topam com calçadas estreitas, irregulares e cheias de obstáculos ameaçadores; deficientes físicos se deparam com escadarias desprovidas de rampas laterais que lhes impossibilitam o acesso a tudo que de mais interessante existe na face da Terra; deficientes mentais desprovidos de raciocínio lógico, topam com linguagens absurdamente complexas utilizadas em livros
infantis, nos meios de comunicação e até em suas próprias casas; a falta de legenda impede que deficientes auditivos possam acompanhar o que se passa nas
TVs, nos filmes dublados ou no cinema brasileiro e, acreditem: essas barreiras representam apenas um grãozinho de areia, no imenso mar de dificuldades que meus pupilos encontram a cada segundo.
Coincidentemente, o melhor filme está sempre muitos degraus acima do que uma boa e forte cadeira de rodas pode alcançar, assim como o programa infantil mais divertido está a quilômetros de distância da compreensão que um cérebro portador da Síndrome de Down pode chegar; do mesmo modo que para um surdo, o encontro tão esperado entre o casal protagonista da novela-das-oito fica resumido apenas á nuca silenciosa do apaixonado declarando seu amor e, tudo isso muito bem temperado por uma música de fundo que anula qualquer possibilidade de compreensão da cena por parte de alguém sem visão. Haja imaginação!
...
Éramos mais de quarenta professores de Educação Física, numa sala da UNICAMP, em 1990 e tantos, no curso de especialização em Educação Física Adaptada aos Portadores de Deficiência. Estávamos atraídos pela mesma vontade: angariar conhecimento para propiciar o desenvolvimento máximo das capacidades que restaram intactas em nossos alunos deficientes.
Também freqüentavam o curso dois colegas deficientes visuais, professores de Educação Física como nós; um deles perdeu a visão aos 17 anos e o outro veio ao mundo já sem a capacidade de ver.
“Uma nuvem no céu azul”, escreveu no quadro negro o professor. Naquela sexta-feira, tínhamos que fazer nosso colega “cego-de-nascença” perceber o que víamos, quando olhávamos para uma nuvem no céu azul.
Missão impossível!!! Definir nuvem, céu, azul? - pensávamos, quando alguém arriscou:
- Uma nuvem é como um imenso algodão, flutuando num céu azul!
-...hum... nuvem, imenso, algodão flutuando, céu...azul! Não sei visualizar isso, não.
Muito bem, vamos tentar de novo:
- Que tal um miolo-de-pão fresquinho, só que mais leve...meio etéreo? - sugeriu alguém, entre a gargalhada geral da classe. Nem mesmo um vidente poderia imaginar algo assim!
Íamos nos enroscando cada vez mais em infelizes tentativas, quando nosso outro colega cego - o que perdeu a visão aos 17 anos de idade - sugeriu:
- Marshmellow, meio que derretendo!!!! - aplausos, em comemoração à sua excelente memória visual.
- Chumaço de algodão branco, no céu azul! outro tentou...
- Enorme algodão-doce e branco! - e, nada. Ou seja, nenhum de nós possuía criatividade suficiente para fazê-lo imaginar a forma de um marshmellow, de um algodão-doce e muito menos a cara das cores.
No final da tarde, exaustos e frustrados, ouvimos sua voz calma e firme dizer:
- Amigos, relaxem! A forma das coisas, o tamanho delas e todas as definições que vocês utilizam para descrever o mundo, são dispensáveis para os cegos de nascença, como eu! Não precisamos e nem queremos saber como é o ‘AZUL’. No máximo, queremos combinar as cores de nossas roupas, só para não chamar mais ainda a atenção de olhos curiosos que nos observam enquanto nos movimentamos pelas ruas. Uma camiseta azul não combina com uma calça roxa, não é mesmo? A cor AZUL é uma palavra, apenas isso! Nuvem para mim é sinônimo de chuva ou a falta do calorzinho que sinto na pele quando ela esconde o sol e - pelo amor de Deus -, não tentem me fazer entender como é o sol, porque não vão conseguir! Mesmo assim, agradeço o esforço de todos vocês”.
Voltei prá casa, tentando imaginar como poderia descrever o cenário lindo que se abria a cada curva: a bela Rodovia dos Bandeirantes à minha frente, sob um céu completamente azul, sem nuvens e um sol quentinho acariciando minha mão ao volante.
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