ME DEIXAS LOUCA
Mariazinha Cremasco

Foi dormir excitadíssima. Afinal, o dia seguinte seria o seu dia. Dia de desafiar regras, de romper barreiras, de sentir-se amada, atrevida. Sentia no ar o cheiro da ousadia. Nunca fora má, nem ao menos maldosa. Mas nesse momento sabia que poderia fazer o que bem entendesse, a despeito das outras pessoas, ainda que gostasse tanto delas.

O marido viajando, os filhos em férias no sítio dos avós. Dispensara a empregada. Afinal a pobrezinha merecia viver um dia de princesa. Folga merecida e uns trocados para cortar os cabelos, fazer as unhas, pegar um cinema. Que só voltasse à noite, depois das oito. Valeria a pena. 

Levantou, espreguiçou-se, abriu as janelas da casa, impecável sem as crianças.

Tudo em ordem, tudo no lugar. 

O sol entrou pela janela da sala às seis e trinta da manhã. Ela preferiria que o dia estivesse cinza, chuvoso e triste. Talvez para compensar a felicidade em que se encontrava, talvez para aplacar o remorso que poderia sentir mais tarde, embora soubesse que não se arrependeria. Mesmo assim, queria o dia apagado. Isso não deu para planejar.

Tomou um longo banho. Tinha bastante tempo. Colocou perfume, penteou os cabelos com cuidado. Vestiu-se como quem vai sair. Não queria parecer vulgar. Não ousou esperá-lo com o negligê transparente, que o deixava louco de tesão.

Precisava ser cuidadosa, afinal ele relutara bastante em aceitar seu convite.

Finalmente o dia chegara.

Leve como uma pluma, elegante como uma gata, esguia como uma garça, caminhou com segurança, percorrendo todos os cômodos da casa. Se quisesse conhecer a casa toda, teria muito prazer em mostrar. Queria ter a lembrança dele em cada pedacinho do lugar onde vivia.

Ajeitou as cortinas, movimentou na imaginação cada peça de enfeite, cada bibelô. Mas em nada mexeu. Nada tirou do lugar. Queria que ele soubesse exatamente como ela vivia.

Vaporizou a sala principal com um spray de flores do campo, as preferidas dele. Cada vez que pensava, suspirava. Era um homem sensível, capaz de admirar flores, cores, formas. Tinha mãos mágicas, sabia distinguir as coisas. Conhecia bem a alma feminina. Assim ela o via. Um homem com alma de mulher. 

Como ele a veria? Achava que era atraente, sem dúvida. Mas o que mais? Chamava-a de louca. E quando ela fez o convite, repetiu: Louca, louca, louca. Doida, doente, maluca, insana. Acabara excitando-se com a idéia. Ah, quando as mulheres querem... aceitou. Era só esperar o dia exato.

Ela planejou tudo como quem planeja um assalto a banco: 

- Você deixa seu carro no hipermercado à seis quarteirões de casa. Vem a pé ou de táxi. Dá um toque para o meu celular quando estiver bem perto. Eu abro os portões automáticos. A porta principal estará aberta e ninguém o verá. Não tem como não dar certo. Teremos o dia todo juntos.

Planejou ainda cada minuto do dia. O café da manhã, quantas vezes fariam amor, onde descansariam, que músicas ouviriam. Quem sabe um DVD para a tardinha (havia providenciado três, conhecia seu gosto). Um almoço leve, como ele gostava. Velas perfumadas. Pena que o sol brilhava e o céu estava azul de doer os olhos. Pena. Queria chuva, trovões e relâmpagos. Queria gritar de amor e que ninguém a ouvisse. Mas o sol é silencioso. E ela gostava de chuva e frio para amar. O único detalhe que lhe fugiu dos planos. O sol, o dia claro, o céu azul.

Ele chegou da forma combinada. Ela fechou as portas. Nervoso, ofegante, não a beijou. 

- Que loucura, disse, com ar de reprovação.

Manteve-se calma. Sabia que ia passar.

Menos tenso, começou a olhar a casa. Olhava de uma forma absolutamente nova para ela. Essa forma de olhar ela não conhecia. Andava, observava. Mudo. Ela louca para beijá-lo, jogar-se em seus braços, não queria perder tempo.De repente, começou a fazer perguntas e mais perguntas. Queria saber de qual telefone falava com ele, em que cadeira sentava, de que lado da cama dormia, que banheiro usava mais. Olhava, curioso, o mundo de porta-retratos perguntando qual o filho mais velho, quem era a mulher de branco, qual era o marido, onde ele costumava ler o jornal, se fumava, quantas vezes faziam amor, já tinham feito amor na sala? A empregada dormia no trabalho? O quintal dava para os fundos de algum vizinho? E se as janelas eram de imbuia maciça, se... Ela explodiu. Crueldade. Querer saber tanta coisa, o que é isso?

- Você está aqui! Isso não basta?

Pela primeira vez em quatro anos, brigaram. Reclamou que era uma insensatez estar ali, que ela comandara tudo, praticamente o obrigara. Agora que agüentasse. 

- Você não está me respeitando, você está me invadindo. Eu esperava mais de você.

- Vou invadi-la, sim. Em todos os sentidos, e de todas as formas. Louca!

Quando percebeu que ela estava chorando, sua alma feminina falou mais alto. Abraçou-a e beijou-a como nunca fizera. Ela entregou-se totalmente, esquecendo-se do mundo. Nem conseguiu colocar o CD com a música escolhida para a primeira transa do dia: "Me deixas louca", com a Elis Regina.

Beijaram-se, enroscaram-se, morderam-se, rasgaram-se. Foram para a cama dela. Exatamente como ela queria. Na sua própria cama. Louca, louca, louca.

Coração disparado, respiração desregulada, fora de ritmo, boca seca. Longo orgasmo explodindo.

Acordou com um trovão.

Finalmente chovia. 

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