FAZ DE CONTA AZUL
Helô Barros
Observo a criança. Vejo-a mover-se pelo quarto e ouço o que ela diz. Cada vez que pega um objeto, empurra um caminhão pelo chão ou acrescenta um bloco de madeira à torre que cresce, fala sobre o que está fazendo como quem conta uma história. Cada movimento tece a próxima palavra, ou uma série de palavras; cada palavra desencadeia outro movimento.
Não há um centro definido neste Universo, o centro está em toda parte. Há coerência neste mundo onde as leis naturais são naturalmente infringidas: caminhões podem voar, um bloco de madeira tornar-se uma pessoa. Veja, ela diz, olhando para as cartas coloridas de um baralho: ali fica a cidade do sete de ouros, os meninos falaram que logo o céu do sete vai ficar azul.
Há quem diga que a vida é matéria do sonho, há quem acredite. Todo e qualquer fato já pode ter acontecido ou ainda está por acontecer. O que importa, é que eu mexa um bloco, diga uma palavra; desencadeie um movimento, diga outra série de palavras e neste caminho criar um faz-de-conta.
O cachorro está com as patas na janela; olhando. Na boca duas bolas, uma azul e outra azul. Com os olhos carentes, pede atenção. Distrai-se, a bola cai, rola. Azul. Como a camisa que ele veste. Ele não sabe que é um sonho, ninguém sabe, nem eu. Só posso ver a gola da camisa e o perfil dele olhando para um ponto no futuro. Futuro?
Ele sabe de algo que não aprendeu ainda. Os dedos dos pés dentro de uma sandália de couro, os óculos de aros pretos remendados de durex. Este homem está disfarçado de de verdade pra que eu não ouça a voz do que nele ressoa em mim. Mas, talvez porque seja um sonho, confesso pro João Luis, acho que gosto dele.
Ah é? Deixa comigo - diz o João.
E eu passo então, a engolir a resposta do que apenas disse. Ele não sai do meu lado, deixa que eu encoste a minha cabeça em seu ombro. À nossa volta pessoas, tantas. O cheiro de suor. Estamos sentados numa caixa de cerveja. Eu, tomando cerveja; nós, comendo caranguejo, cantando sambas, batendo o pé no ritmo do calçamento; eu, rindo do fato de ele só tomar guaraná caçula. Vamos em direção à cidade baixa, quero comprar uma sandália de couro, uma igual a dele, lá no mercado Modelo. Meu sexo lateja como flor.
Decido voltar de avião já que não quero chegar convencionalmente na cidade de São Paulo depois de saber que existe uma camisa de gola baixa e azul. Ele foi com o Raul. Foi quem conseguiu a passagem pro carnaval. Se não fosse por Raul ele não teria conseguido o bilhete e eu, não o teria conhecido. No sonho. Não teria também sido chamada de potranca por um bêbado qualquer no meio do burburinho do trio elétrico, ele não teria me protegido desta obscenidade, eu não teria tomado aquele porre de pedir pra fazer xixi na sarjeta e ele não teria deixado o amuleto pra que eu tomasse conta.
Isto é passado? Não, só uma urgência. Os fatos, como as palavras são apenas símbolos, como os sonhos ou os blocos de madeira que serão empilhados até que sejamos novas pessoas, novos caminhões a voar pelo espaço de um quarto.
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