O ÓDIO CAMINHA COM
UM VESTIDO AZUL
Daisy Melo
Era um dia morno. O sol estava tão grosso que até se podia segurá-lo com as mãos. E o céu de um azul estranho, sem nuvens, dava a impressão que ia desabar a qualquer instante. Não de chuva. Despencar mesmo nas cabeças das pessoas.
Carolina passeava pela Ataulfo de Paiva, despreocupada e calma. Seu corpo a seguia levado por movimentos internos que ela não reconhecia. Não eram suaves nem ariscos e ela não estava alegre nem triste, não sentia nada, mas estampava um sorriso vagaroso enquanto olhava as vitrines. O som dos carros e ônibus parecia música entrando nos ouvidos. Parou de repente em frente à loja de utilitários domésticos e se encantou, sem saber porquê, com uma cestinha de palha dessas de colocar torradas. Era de vime e verde. Retornou enfim a caminhada e foi ai que a viu. Desviou o olhar depressa e na verdade não teve certeza se foi apenas impressão. Mas naqueles instantes mínimos, a imagem tomou sua vida inteira. E deslocou-a de sua inércia para um mundo pleno de horror e rebuliço onde se deparou com o perigo de viver.
A mulher estava com um vestido azul, solto e curto. E caminhava como se dançasse. E tinha um rosto, a filha da puta. Se bem que não parecia bonita nos seus cabelos presos. Mas sorria. E seu sorriso vibrava! Será que era para Carolina? Nem mesmo sabia se tinha sido reconhecida. Na verdade, jurou secretamente que não tinha e continuou o percurso com a visão azul triturando o peito. E aquela cor penetrou nos poros, combinou com o vermelho do sangue, manchou toda sua existência. Mas, era ela mesmo? Ou o sol misturou-se com o ar pesado e virou uma espécie de gás alucinógeno, fazendo-a ver coisas?
Vários sentimentos eclodiram nela de uma só vez, como bombinhas de São João, ocupando o espaço de pensar ou respirar: tristeza, mágoa... de repente era um utilitário deslocado como a cestinha de vime verde. O que tinha vindo fazer no Leblon, Meu Deus? E que poder tinha aquela mulher dentro do seu vestido azul para suscitar tamanho turbilhão?
Hesitante e trêmula, Carolina retirou de si duas capacidades: a da apatia e a do sobressalto e por um momento a falta de sentido deixou-a tão livre que não sabia para onde ir.
Recostou no poste da esquina, recusando-se a abrir os olhos. Temia até pensar pois lhe dava uma sensação de desmaio, lançava-a num abismo fundo e denso.
No seu peito sobraram descompassos, incertezas. E o pensamento ainda confuso tenta se agarrar num fio pendurado do coração esgarçado e seco.
Carolina agora corria, arfava, muda. E pensar que o dia tinha começado claro, estúpido, tímido e solto. A pulsação batia violenta, espaçada. Sua vida perdera o sentido e era como estar num bonde sem trilhos. Como se aquela visão azul a houvesse insultado, fazendo-a cair num destino de mulher, cansado e triste, assegurando que ela era uma a mais que perdia. O rosto que sorria tinha as batatas. Vencera a batalha, ficando com a melhor parte.
Cansada e ofegante, Carolina sentou-se no banco da praça Antero de Quental e respirou pesadamente. O suor escorria pela testa, pelas faces, pelo dorso. Fazia um calor sufocante. O ar morto e espesso tinha algo de viscoso.
De repente, como uma estranha música, o mundo recomeçou ao seu redor. Ela ouviu as vozes indistintas dos transeuntes na calçada, a surda trovoada do tráfego, o barulho insistente das buzinas, a algazarra das crianças. Mas o mal estava feito. Sua marca era a dor intensa com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. Ela ficou ali por muito tempo... na praça. Liberta da cidade embora ainda prisioneira do vestido azul.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado. Com as luzes, a visão da mulher ficou desvanecida, irreal. Carolina voltou para casa atravessando as ruas como se atravessasse o amor e seu inferno. E o pensamento martelava o óbvio: o ódio era azul.
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