SAPATOS
AZUIS
Bárbara Helena
O vestido era lindo, azul.
Tinha uma fita de strass nas alças que faiscavam como estrelas.
A voz da mulher acariciava:
- Sou sua fada madrinha, querida...
Sentia-se uma Borralheira mesmo. Todo dia de casa para o trabalho, os pés doloridos, costas moídas de mostrar sapatos, manusear artelhos alheios, enquanto os seus a torturavam. Band-aid já não aplacava a dor crônica, nem na alma esparadrapo sustentava o tédio. Tudo sempre igual, nunca uma nuvem, um paetê.
E agora o vestido, céu aberto... véu de deslumbramento.
Mas o que a fizera, mesmo, perder a cabeça, foram os sapatos azuis. Do mesmo tecido delicado, com uma fina tira de pedrinhas, terminando na fivela brilhante. O salto, altíssimo, formava um ângulo perfeito com a plataforma onde estava engastado.
- É tudo seu... para hoje...
A fada-madrinha gorda, sorridente, arrumava o cabelo oxigenado onde o preto lutava para aparecer, vencendo bravamente a guerra contra o louro opaco dos anéis artificialmente arranjados. O batom extravasava a boca, alargando o sorriso, vencendo a resistência:
- Você vai gostar... o ambiente é finíssimo...
A dança... lustres de cristal... quem sabe um príncipe para tirá-la do castigo dos pés alheios... Iria apostar.
Respirou fundo e aceitou. O sonho azul, maquiagem pesada, cabelo frisado. E os sapatos macios, nem sentia mais dor. Do alto do sonho contemplava a fada com doçura.
- Maravilha!... admirou o resultado. Perfeita.. vai ser Cinderela...
***
- Pera aí, Marlene!... que droga é esta? só esta merreca aqui?... Você viu com quantos eu dancei? E os programas, porra? Foi pra isto que me tirou da sapataria?... Ganhava mais cheirando os pés dos outros, puta que pariu!...
- Olha aqui, sua vadia, é pegar ou largar... Ta pensando que Cinderela é mais do que nome de guerra? Fada madrinha é pra quem pode não é pra quem quer não. Pobre é assim mesmo, explode tudo à meia-noite. Estas piranhas são todas umas ingratas!...
Levantou para o céu os cílios de vison, ajeitando o vestido justo, apertado na barriga.
- Ta engordando, perua – Cinderela respondeu maldosa, batendo na barriga proeminente. Ta bom, deixa que eu me viro nas quebradas. Colocou o dinheiro no sutiã, levantando a tira gasta de strass. Mas presta atenção... - a mão massageou o pé no sapato que já fora azul - um dia... um dia eu viro abóbora de novo.
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