A VIAGEM
Alexandre Fernandes Heredia
Francisco sentiu a pressão da decolagem em suas costas e em seus ouvidos, enquanto tentava disfarçar a apreensão que sentia. O empuxo da aeronave era forte, mas seria o suficiente para decolarem? Não teve tempo para elucubrações mais profundas, pois antes que ele percebesse, já estavam no ar, e fazendo uma curva para correção da rota.
Era a primeira vez que ele entrava em um avião, e mesmo o calafrio da decolagem não foi suficiente para amainar a empolgação pelo fato de estar ali, naquele momento. Seria uma viagem curta, era verdade, mas a sensação de agitação exacerbava a trivialidade do fato. Ele estava voando!
Ajeitou-se em sua minúscula poltrona, olhando em volta, e avaliando o ambiente pela primeira vez. O espaço interno do avião era apenas um pouco maior do que de um ônibus comum, com a única diferença de ser ligeiramente cilíndrico. As poltronas se dividiam em aproximadamente vinte fileiras de seis poltronas, divididas por um corredor no meio, por onde circulavam as comissárias. O avião ainda estava arremetendo quando elas começaram os procedimentos para o serviço de bordo.
Francisco estava animado. Olhou pela pequena janela circular, e viu a cidade distanciar-se aos poucos, os prédios, as ruas, tudo. Estavam se aproximando das nuvens, e ele timidamente acenou para a cidade, como um adeus. Após atravessarem a camada de nuvens, Francisco vislumbrou pela primeira vez o azul límpido do céu, sem a interferência de camadas e mais camadas de poluição. Era lindo!
Apenas após vários minutos de contemplação estupefata, até mesmo infantil, Francisco ouviu a comissária, que estava oferecendo bebidas, e perguntava o que ele queria. Olhou em direção ao carrinho, tentando fazer uma escolha que não parecesse idiota, mas a paisagem metropolitana das garrafas apenas serviu para confundi-lo ainda mais.
– Peça suco de tomate – disse seu vizinho de poltrona. – É a melhor coisa para evitar o “jet lag”.
Francisco aceitou a sugestão sem pensar, nem imaginar o que era "jet lag". Seria a primeira vez que tomava suco de tomate, nem sabia se gostava daquilo, mas sentia-se tomado por uma ousadia juvenil, numa vontade de experimentar coisas novas. Que diabos, qual seria o problema?
– Manoel – apresentou-se seu vizinho, estendendo desajeitadamente a mão para apertar a de Francisco, que quase derrubou o suco da minúscula bandeja. – Está nervoso?
– Não – respondeu Francisco – Nervoso, não. É que, bom, é a primeira vez que vôo de avião.
– Não é nada demais – disse Manoel. – É apenas uma ponte entre um local e outro. Em pouco tempo estaremos em nosso destino, seguros e tranquilos, e sairemos deste castigo claustrofóbico pressurizado.
– Você não gosta de voar?
– Na verdade, voar não é nada. O que interessa é onde vamos chegar, não é mesmo?
– Bem, sim, mas, sei lá, é legal. É uma sensação meio mágica.
– É um transporte, um meio, só isso. O que interessa é o que vai acontecer depois, e não agora.
Francisco calou-se. Sentiu-se um pouco estúpido por estar tão empolgado com o vôo. Manoel não deixava de ter razão, era só um meio de transporte, nada mais. Até o suco de tomate perdeu um pouco do gosto, e, chamando a comissária novamente, pediu para trocar por uma dose de uísque com gelo, uma bebida mais madura do que suco de tomate.
De repente, a cabine já não era um lugar tão agradável assim. Era apenas uma caixa de metal e plástico, que flutuava graças a influência de pressões atmosféricas. Nada de mais. E o ar condicionado estava muito frio.
– O avião vai explodir – disse o outro vizinho de Francisco, que estava na poltrona próxima ao corredor.
– Deus me livre! – benzeu-se Manoel. – Vira essa boca pra lá!
– É fato. Em alguns minutos o avião vai explodir e todos vamos morrer.
– Você pirou? – gritou Manoel. – Cala essa boca! Isso não é coisa que se diga numa hora dessas.
– Por que você diz isso? – perguntou Francisco, curioso.
– Sabotei o avião – respondeu o estranho. – Danifiquei o sistema injetor de combustível, o que fará o motor explodir a qualquer momento.
Manoel nitidamente empalideceu, e calou-se. Suas mãos buscaram um crucifixo pendurado em uma corrente em seu pescoço, que ele apertou com força. Murmurou algum tipo de prece, e benzeu-se ao final.
– Você é louco – disse, mais calmamente desta vez. – Está querendo apenas nos assustar. Não ligue para ele, cara. É só mais um pirado com síndrome do pânico.
Naquele momento, a comissária passou novamete com o carrinho, e perguntou o que eles queriam comer, descrevendo sucintamente as opções.
– Eu quero o sanduíche de peru na ciabata – disse o estranho, com um sorriso simpático.
– Arrá! – interviu Manoel. – Se vamos morrer, pra que se preocupar em comer?
– Já que vamos morrer – respondeu o homem, tranquilamente – por que deveria me negar o prazer?
– Esse sanduíche plastificado? Que prazer há nisso?
– É o que tenho disponível. Além do mais, o chocolate de sobremesa é ótimo!
Manoel aceitou a bandeja da comissária, assim como Francisco, mas nenhum deles tocou na comida. O homem desembrulhou o sanduíche e comeu com prazer exagerado, o que apenas serviu para irritar o abalado Manoel.
– Não ligue para ele – disse para Francisco. – Está só querendo nos assustar. Chegaremos sãos e salvos em nosso destino, e seguiremos nossas vidas. A vida continuará após a viagem, isso eu garanto.
– Por que você faria uma coisa dessas? – perguntou Francisco, ignorando Manoel. – Qual o motivo pra você explodir o avião?
O homem pensou um pouco, enquanto terminava de mastigar um bocado do sanduíche, e depois respondeu, dando de ombros:
– Não tenho motivos.
Francisco riu.
– E que provas você tem que vamos morrer?
– Nenhuma.
– E por que tenho que acreditar em você? Prefiro acreditar na hipótese de Manoel, que é muito mais confortável e agradável.
– É uma escolha pessoal. Não peço que acredite em mim. Só estou esclarecendo a vocês um fato: vamos todos morrer. Lide com a informação como quiser.
– Rá! – interviu novamente Manoel. – Não disse? Ele quer apenas te enrolar. Por que alguém explodiria um avião cheio de pessoas sem motivo? Qual o sentido de tudo isso?
– Não há sentido. Simplesmente é um fato.
Francisco ia responder “Você é louco!”, mas sua fala foi interrompida por um som alto e abafado, como um bumbo rachado. As luzes da cabine se apagaram por um segundo, acendendo logo em seguida. Os indicadores de afivelar o cinto de segurança e de proibido fumar se acenderam, e as comissárias se apressaram em travar o carrinho no final do corredor. Logo em seguida iniciou-se uma forte turbulência, que obrigou Francisco a segurar forte a bandeja e o copo para evitar que caíssem. A comissária falou no sistema interno de som para que todos permanecessem sentados e com os cintos afivelados, que a turbulência logo passaria, mas um sentimento de pânico se generalizou. Manoel crispou o braço de sua poltrona com força, deixando a bandeja e a bebida caírem no chão, e, com os olhos fechados, começou a rezar.
– É agora – disse o homem ao seu lado. Manoel o ignorou, e continuou a prece.
Francisco se apavorou. Olhou para a janela, e viu que uma fumaça preta saía da turbina sob a asa. Outros passageiros também perceberam, e um pandemônio se instaurou na aeronave. Gritos assustados e choro descontrolado por todo lado.
– Por quê? – gritou Francisco para o homem, que continuava a comer seu sanduíche, ignorando o tumulto. Novamente, deu de ombros.
– A morte é inevitável, seja hoje ou seja em qualquer outro dia. O importante não é o por que, mas o que você vai fazer no tempo que te resta. Eu te pergunto: se você soubesse que o avião iria cair, você embarcaria?
– É claro que não!
– Assim é a vida. Você embarcou nela, mesmo sabendo que um dia morreria. Nosso amigo aqui decidiu passar o tempo que lhe restava rezando. O que você vai fazer?
Francisco abriu a boca para responder, mas as palavras não vieram. A turbulência havia diminuído, mas mesmo assim ele sabia que o problema não fora solucionado, pois o comandante estava berrando procedimentos de emergência pelo sistema interno de alto-falantes. Tinham poucos minutos.
Calmamente, Francisco abriu a embalagem do sanduíche em sua bandeja, e deu uma mordida. O sabor era delicioso, o melhor sanduíche que já comera em sua vida. Tomou um gole do uísque, arrepiando-se quando sentiu o malte queimar de leve sua garganta. Era um uísque barato, mas seu sabor era magnífico, e a temperatura, simplesmente exata. Estalou a língua de prazer.
Seus olhos buscaram a janela. O mar de nuvens faziam um ângulo de aproximadamente trinta graus com a janela, devido a trajetória descendente da aeronave, mas não foi o que chamou a atenção de Francisco. Foi o céu, maravilhosamente limpo e azul, iluminado pelo sol forte do final de primavera. Azul como nunca vira, ou percebera, em toda sua vida.
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