EU ME RENDO. TENHO
L.E.R.
Vera Vilela
Dia de pico, agência bancária cheia de gente, eu trabalhando desde as 9h da manhã. São 15h e de repente o papel que segurava com a mão esquerda simplesmente cai ao chão. Olho para meus dedos – parecem tortos – sensação estranha, misto de dor e repuxo nos nervos. O que será? Isso foi há 15 anos.
Durante muito tempo nada mais sinto.
Bastante tempo depois, novamente um dia de muito movimento, sinto a mão direita repuxar, agora sim parece uma dor intensa, profunda, esquisita. O colega do caixa ao lado me olha e diz:
-Pode procurar um ortopedista, você já deve estar com LER!
LER*? que diabo é isto, eu só ouvi essa palavra em gozações de chefes em relação aos funcionários – é LER, LERdeza.
*Há muitas definições. Porém o conceito básico é de que se tratam de alterações e sintomas de diversos níveis de intensidade nas estruturas osteomusculares (tendões, sinovias, articulações, nervos, músculos), além de alteração do sistema modulador da dor. Esse quadro clinico é decorrente do excesso de uso do sistema osteomuscular no trabalho
Esqueço o assunto novamente. A dorzinha persiste por algum tempo e some, ora, não era nada.
Após dois meses estou com a filha no colo, vou embarcar no trem lotado, fui leva-la ao médico e na volta o trem estava lotado. A filha é pesada, mas não posso deixa-la no chão.
O trem para, sou levada junto à multidão para a porta do trem, quando coloco os dois pés dentro do vagão sinto uma força contrária, alguém me empurra para fora, está roubando o relógio da mão direita, leva o braço junto, tirando-o da firmeza que segurava minha filha – nunca havia percebido antes, minha mão esquerda é incapaz de suportar o peso de minha filha – ela escorrega e agora é segura apenas pelos dedos fracos que resistem, mas a dor é intensa e minha filha está pendente no vão entre o vagão e a estação. O ladrão consegue seu intento e num puxão mais forte leva o relógio e libera minha mão que, rapidamente, puxa minha filha para cima. Entro no vagão e fica no pensamento apenas a imagem do ladrão que não respeitou uma mulher com uma criança no colo.
*Como evitar a LER / DORT?
- Incentivar o trabalhador a prestar atenção em sintomas e limitações, mesmo que pequenas, e orientá-lo a procurar logo auxílio;
- Propiciar aos médicos que atendem aos trabalhadores, um diálogo com a empresa nos casos em que houver necessidade de mudar as características do posto de trabalho;
- Propiciar aos médicos, reciclagem para que possam atender adequadamente o trabalhador;
- Ter uma atitude de amparo ao trabalhador com LER / DORT tanto em relação ao tratamento quanto a sua reabilitação;
- Ter uma política de prevenção, para que se evite o adoecimento de mais trabalhadores.
- A prevenção de LER / DORT deve pressupor a mudança das características acima citadas. Essa mudança atinge o modo de se trabalhar, as relações entre colegas, as relações com a chefia, a organização do trabalho. Assim, prevenção de LER / DORT não é sinônimo de mera troca de mobiliário
Os dias passam a dor aumenta, resolvo procurar um médico e ele me diz que pedirá um exame para determinar a causa da dor.
O exame é terrível, agulhas de ouro são enfiadas em meus nervos, ou tendões, não sei exatamente o que é, e choques são ministrados nos nervos. Só sei que a dor é insuportável, passo mal e quase desmaio. Percebe-se que, se não era para doer, algo muito errado está acontecendo.
Pego o resultado do exame e levo ao médico. Adivinhem? Nada, meu exame não deu absolutamente nada, sou uma pessoa normal, meus tendões estão ótimos e minha vida agora será outra, pois devia ser tudo psicológico. Não tenho motivos para sentir dor, os exames de sangue dizem que tudo está bem. Vou para casa feliz e com o braço doendo, não posso mais segurar a barra do ônibus com a mão esquerda, dói demais.
Dia de vencimento da antiga TRU – taxa rodoviária única, que de única não tinha nada – autentico exatamente 800 guias em um dia. Que maravilha, ninguém me deu um troféu, um distintivo, nem mesmo os “parabéns” ou um “muito obrigado”. Mas, esta noite eu não durmo, os braços doem, as mãos latejam, o ombro está pesado. E dizem que serviço de banco é leve.
Já se passaram uns 6 ou 7 anos do primeiro sintoma e aprendo a conviver com a dor diária, quebro uma média de 7 a 8 copos por semana na tentativa de lavá-los. Uma tigela de louça me escapa da mão, quebra-se na pia e quase perco o dedão, mas tudo bem, foi um acidente.
Ninguém, mas ninguém mesmo fala mais em LER ou doença ocupacional, nada. Acho que era um surto que passou. Apenas minha dor persiste. Já não posso levantar minha filha do sofá à noite e leva-la para a cama, meus braços não têm mais forças para isto.
Um depoimento vergonhoso, mas necessário. Estou no banheiro, fiz minhas necessidades físicas e quando tento fazer a higiene, minhas mãos não respondem, se negam a segurar um simples papel e dobrar o pulso. Choro de vergonha, espero, faço massagem nas mãos até que uma delas consiga fazer o serviço. Calo-me.
No dia seguinte, nova crise. Quando levanto o braço para prender os cabelos longos com uma presilha, sinto uma dor terrível no ombro. Preciso da ajuda do outro braço para descer o que está levantado e encostado na parede. Não dá mais, preciso procurar um médico.
No banco sinto que as coisas não estão bem para mim, sempre fui uma funcionária eficiente, nunca me importei com horários, trabalhava de graça, sem ganhar nenhuma hora extra, chegava a autenticar por mais de 8 horas seguidas e, agora parece que sou um bicho feio e perigoso, por que será?
Vou ao médico e ele diagnostica como bursite*, coisa comum em mulheres, porque lava roupa, lava louça, varre chão, etc...
Tomo vários medicamentos e depois de um tempo, como por milagre as dores vão sumindo. Os antiinflamatórios fortes fazem o efeito desejado e mascaram a doença por um bom tempo.
*O QUE FAZER NO CASO DE CONSTATAÇÃO DE DORT/LER?
Em primeiro lugar deve ocorrer a emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) para que haja notificação ao INSS independente de afastamento ou não do trabalho.
Nos casos em que houver necessidade de afastamento do trabalho por até 15 dias, a empresa deverá pagar integralmente os dias “parados”.
Nos casos em que houver necessidade de afastamento do trabalho por mais de 15 dias, a empresa deve pagar integralmente os primeiros 15 dias, e o INSS deve pagar a partir de 16º dia.
Isto vale para trabalhadores que tenham qualquer tempo de trabalho na empresa, pois os benefícios previdenciários, nos casos de acidente do trabalho e doenças ocupacionais, podem ser concedidos sem período de carência.
Quem dá alta formal do INSS é o perito da instituição.
Não me atrevo mais a tricotar blusas de lã para meus dois filhos, há anos isso se tornou impossível, não consigo mais fazer um crochê para enfeitar a casa, mas afinal, sou bancária e não preciso disso.
Os anos passam e as dores voltam, mas quero me transferir para uma agência no interior e fugir deste mundo doido. Se eu estiver doente não irão me querer em outro lugar, pior ainda se eu estiver com aquela tal de LER, que dizem, acabam com a vida profissional de qualquer um.
Assim passam-se mais dois anos. Finalmente consigo ir para o interior, agora sim, tudo será diferente, a dor vai sumir, menos movimento, menos fila e afinal nem para o caixa eu vou, eles são tão bonzinhos que me transferiram para a função de escrituraria e me tiraram a comissão de caixa que eu recebia. Mas afinal eu ia para o interior.
No mesmo ano começam os novos planos monetários do governo e fulminam na interdição de vários bancos, inclusive o que eu trabalho. Começa uma nova maratona contra o desemprego e o fim do banco estatal. Demissões voluntárias são gentilmente oferecidas à todos. Muitos saem com medo do futuro, o serviço dobra, triplica, mas estou empregada, que bom!
Começo novamente a loucura de viver estressada, pelo serviço e agora também pela pressão do desemprego. Tudo é motivo para a piora da doença, cada dia é um sacrifício, escovar os dentes? tenho que apoiar os cotovelos na pia, um para escovar os dentes e o outro para segurar os cabelos. Pentear os cabelos, a mão direita faz bem esse serviço, desde que a mão esquerda ajude segurando o cotovelo e levantando-o.
Coisas simples como colocar a parte de cima do lingerie se torna também um exercício mental de criatividade, até que acho o jeito certinho, sem muita dor.
As idas ao banheiro também merecem criatividade e tornam-se mais fáceis com a prática e conversa com outras colegas com o mesmo problema. Surgem novos remédios para a dor, receitas são trocadas diariamente entre lesionados.
Para comer, oras, tantas pessoas apóiam o cotovelo na mesa para comer, por que não posso eu também, fica mais fácil.
Serviços como pregar botões, costura de emergência, uma maquiagem certinha, coisas banais, oras, é impossível, mas, enquanto estiver empregada posso pagar para que seja feito.
Pintar uma unha do pé nem pensar, mas também ninguém morre se estiver sem esmalte não é?
Enxugar o cabelo com a toalha é uma tarefa quase impossível, mas se enrolá-la
e deixar um tempo, o efeito é o mesmo.
Estender ou recolher roupas do varal, também é impossível, mas tenho empregada oras, se molhar com a chuva ela lava de novo.
Pegar peso? panelas no fogo? passar um simples cafezinho? o que é isso? ninguém precisa disto para viver.
O importante é a minha produção no banco, as medalhas que ganhei vendendo produtos, até um microcomputador que foi prêmio. Sou ótima mesmo.
Faço um concurso para supervisora e passo, maravilha, meus dias de dores acabaram. Agora só servicinhos leves como, abrir e fechar portas de casas fortes que pesam uns 300 ou 400 quilos. Contar milhares de notas, uma a uma para não correr o risco de falsificação. Trabalhar 12, 14, 15 horas seguidas. Muitas vezes sem uma hora inteira de repouso. Isso sim é vida, agora estou bem. Tenho status, abro auto-máquinas, fecho, sei lidar com todas e digito o dia todo, não no caixa, mas agora em máquinas, em teclados, em máquinas de datilografia.
Resultado: Bomba!
*A cada 100 trabalhadores na região Sudeste um é portador de Lesões por Esforços Repetitivos.
As LER / DORT atingem o trabalhador no auge de sua produtividade e experiência profissional. Existe maior incidência na faixa etária de 30 a 40 anos, e as mulheres são as mais atingidas.
26,2% dos funcionários do Banco do Brasil estão apresentando algum sintoma de DORT, de acordo com o exame periódico realizado em 1998 pela Cassi.
As categorias profissionais que encabeçam as estatísticas são bancários, digitadores, operadores de linha de montagem, operadores de telemarketing, secretárias, jornalistas, entre outros.
Somente no primeiro ano de afastamento do funcionário, as empresas gastam cerca de R$ 89.000,00 (oitenta e nove mil reais).
As dores recomeçam e agora pior a cada dia, fico constantemente irritada e sem paciência. Meus dias se resumem em trabalhar das 7 horas da manhã até 7, 8, 9, 10 horas da noite, sem limite para terminar, pode ser qualquer horário. Chego em casa brava, irritada, não vejo mais os filhos, me deito muitas vezes sem nem tomar um banho e desmaio na cama. Acordo por muitas vezes no meio da madrugada com fortes dores e móvel colocado ao lado da cama com uma almofada alivia minhas dores nos piores dias.
Minha sorte é que agora pertenço a uma região que tem um sindicato forte, que realmente cumpre com seu papel de defesa dos funcionários. Fico sabendo que posso finalmente me tratar. Vejo vários colegas com o mesmo problema e que não se escondem, são sim, vítimas ainda de muito preconceito e discriminação, mas eles são fortes e lutam pelos seus direitos. Procuro médico especialista e nos primeiros exames já ficam comprovadas as lesões que ganhei para o resto da vida.
Resta-me agora um tratamento apenas para diminuir a dor e um afastamento do trabalho para aliviar o período crônico em que me encontro.
Eu me rendo! Não dá mais para postergar, preciso deixar o trabalho e me cuidar. Tenho LER!
É inacreditável que eu, uma funcionária competente, altamente recomendada para trabalhar em qualquer agência, agora mudei de lado. Estou ao lado dos supostos “LERdos” – os lesionados - pessoal que não gosta muito de trabalhar, que fica passeando no auto-atendimento, pois não podem mais executar movimentos repetitivos.
Ficar em casa por mais de um ano após tanto tempo de serviço - ao todo 26 anos - me parecia até uma boa coisa, afinal na maioria de minhas férias fui resgatada em casa para “colaborar” com a empresa. Mas não foi assim, entrei em depressão e percebi que em nenhum momento um colega me ligou para saber se estava ainda viva ou morta, ou o motivo de meu afastamento. Foi necessária então uma terapia e também medicamentos antidepressivos, etc...
Hoje estou novamente em casa, após uma tentativa frustrada de readaptação, quando então esqueci de todo o sofrimento que havia passado e me senti novamente uma profissional. Abusaram de minha boa vontade, consegui ficar trabalhando exaustivamente durante 6 meses e ganhei uma piora significativa em meu quadro clínico.
Sinto que passarei o resto da vida convivendo com estas dores, com a frustração de não ter conseguido me aposentar tranqüilamente, coisa que, caso não tivesse mudado a lei, eu já estaria aposentada antes da primeira licença por LER. Não é fácil saber que ficarei assim o resto da vida, que pouco melhorarei, que terei dificuldade em cuidar de um neto entre as tantas coisas boas que eu ainda faria.
O que ajuda um pouco é a hidroterapia que faço, 2 vezes por semana, são exercícios com os braços, alongamentos e massagem feita por fisioterapeuta especializada, nestes dias me sinto melhor e quase sem dores.
Quanto às empresas, ainda acham que compensa mais pagar as despesas com seus lesionados do que adotarem medidas mais fáceis de prevenção da doença, como oferecer móveis adequados para o exercício das funções, oferecer um horário de trabalho compatível e com os descansos obrigatórios para digitadores, menos pressão sobre a produção de cada um, criando assim um clima melhor de trabalho.
Os responsáveis pela saúde dos empregados nas empresas deveriam pensar que, do outro lado do dinheiro economizado estamos nós, seres humanos a mercê das máquinas.
- Dados recolhidos em:
Programa Nacional de prevenção às LER / DORT - http://www.geocities.com/frcavalcanti/
Pesquisa Data Folha de 07/2001 – Vide dados completos na página - http://www.uol.com.br/folha/datafolha/po/ler_102001.shtml
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