ACERTO DE CONTAS
Shirley Kühne

Onde começou,
findou também.
Um bar. 
Reino do inebriante Baco.
Um trago de vinho,
afastou o travo da solidão.
No mesmo barco,
naufragou ilusão.
O mar do engano
coube inteiro numa taça.
Digo-lhe: meu doce acabou.
Nada de açúcar, baby.
Fiquei diabética.
Cotidiano hábito de
pingar gotas de 
aspartame na vida.
Parece doce,
mas amarga no fim.

        Não sei se você merece de mim algumas palavras. Mereceu meu afeto. Mas isso é outra conversa. Vou escrever-lhe esta carta, mas tenho certeza de que não irá recebê-la. Tenho ainda anotado seu endereço num pedaço de papel em bom estado, legível. A carta chegaria, basta eu decidir...... Isso me dá um certo prazer, algum poder talvez. O quão poderosas as palavras podem ser. Tenho na mão um trunfo valioso. Mas talvez não saiba usá-lo como já aconteceu outras vezes.
        Acho que você gostaria de escutá-las de mim, ou lê-las. Quem sabe ouvi-las de alguém que as contasse.... Tenho muitas coisas a revelar: pedir desculpas; esclarecer sentimentos confusos; dissipar desentendimentos; mostrar o lado patético de nossas ações e rir delas; esperar, como Penélope, suas respostas como verdades, inteiras ou não. No entanto, ao ler estas linhas você irá responder com naturalidade coisas que não me importam, porque não virão de dentro de você. Repetirá o que tem dito há anos. Resposta automática. 
        Você mesmo disse ter se adestrado com esmero na arte da mutação amorosa. "Não me apego a ninguém" (mentira); "Não, não choro mais. Foi-se o tempo...." (alguém disse que chorou no dia em que fui embora); "Esbravejo e brigo até morrer pelo que acredito" (mas tem medo, muito medo da morte). 
        Ou seja, nada do que disser - "Não, não tenho pensado a respeito"/ "Não seja piegas...., passou!"/ "Estou bem......"/ "Mamãe manda lembranças..." / "Já esqueci!" - me fará deixar de vê-lo abatido, olhos paralisados no seu quartinho de memórias, ou mesmo conversando amenidades com amigos (amigos?). Vai chegar solitário, mesmo acompanhado, em casa, onde irá tirar o boné, cachecol, pulôver, calça, mas não arrancará a consciência do que está por trás da sua dor.
        Pois é, amor - esta palavra tão mastigada entre os dentes da tua boca -, não serve mais pra nada.
        A tua angústia, a verdadeira, não aquela melancolia natural (?) admitida na roda de bar, eu presenciei. Eu a vi em seus olhos todos os dias em que estivemos juntos: andando de mãos dadas pelo centro da cidade, olhando bancas de jornais, encontrando conhecidos em noites de autógrafos, nos beijando em silêncio, delicadamente, no meio da madrugada insone, ou quando éramos acordados de algum sonho impossível pelo poderoso troar do telefone soando como o esgrimir de espadas no ar. Assistia ao jornal da TV não vendo nada a seu redor, tampouco a tela. Hipnotizado pelo seu passado. Distraindo-se da sua própria vida. 
        É dela que foge. E da coragem de arrancar a angústia do meio dos seus pêlos, dos poros, da sua voz monocórdica, do seu discurso ora monossilábico, ora retórico, da sua inércia vendo o pó recobrindo cada instante do nosso presente.
        Me rendi às evidências do seu sepultamento interior. Sei disso agora. 
        Você sabe? Talvez se engane para sobreviver. Mas não terá meu entendimento fazendo coro ao fracasso que cultiva com dedicação.
        Mesmo assim, vou colocar estas folhas dentro do envelope. Talvez, refletindo mais, eu venha a redescobrir a essência, a cumplicidade que nos uniu, e então as envie.....
        Se isso acontecer, nada de resposta. Estou tirando hoje, junto com minhas roupas, a dor da sua ausência. Não será necessário indagar, refletir, ponderar ou ressuscitar o que passou, pois ele deixará de existir. 
        É certo que você nunca venha a receber esta carta. Todas as palavras têm seu tempo: se não ditas, morrem na garganta, pois não tiveram razão de ser. Porque se eu mesma não enviá-la ou queimá-la, quem a encontrar deve ficar bem ciente de que você jamais deve saber sobre o quê eu pensei na minha última noite......... 


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