RENDIÇÃO: AS
ACEPÇÕES
Samuel Silva
Caritênio colocou alguns cubos de gelo no copo longo, derrubou um pouco de uísque dentro e completou a mistura com a água de côco industrializada que tinha gelado fazia algumas horas, mexendo tudo com o dedo indicador da mão esquerda. Era destro, por isso reservava o dedo da sinistra, mais higiênico, para usos como aquele. Os dedos da mão direita acabavam tendo usos menos salutares, seja cutucando o nariz, seja fazendo a mira no banheiro. Sorveu o líquido amarelo-leitoso quase que de uma só vez e completou a dose generosa com mais uísque. Acendeu o cigarro e sentou-se na cadeira da varanda, olhando os apartamentos do prédio vizinho, tão próximo que permitia-lhe participar das vidas dos vizinhos. Precisava pensar com calma, pois fora chamado a tomar uma difícil decisão: que fazer com sua querida Claudinéia. Ela lhe devia muito, pessoal e profissionalmente, pois era melhor hoje do que fora graças aos ensinamentos que ele lhe dera, os truques de sobrevivência, as dicas de trabalho, tudo que ele conhecia, tudo que ele aprendera por si mesmo ou lhe transmitira sua falecida mãezinha, que deus a tenha em bom lugar, qualquer que seja deus e o lugar. Aquilo de Claudinéia recusar-se ao sexo anal era, no entanto, uma gigantesca pedra no caminho deles, uma subtração injustificável a direitos que ele fizera por onde ter e que agora lhe eram negados de modo mais que injusto! E olha que ele bem procedeu, com carinho e gel, com delicadeza e tato, muito tato, é verdade, ele pensou e sorriu para os dedos da mão direita que empalmavam o copo de bebida. Algumas tentativas, até bem sucedidas para ele, e ele pensou que enfim a havia conquistado, que havia submetido às resistências do tabu que foram implantadas por anos de educação católica, que ela se rendera ao que não era nada mais que apenas outra forma de fazer o que se fazia quotidianamente por todo o mundo. Em alguns países ou em algumas circunstâncias era coito inclusive mais recomendável, apesar dos estigmas bíblicos. Ela se rendeu e ele comemorou!
(A vizinha do oitavo chegou em casa e ele a acompanhou nos diversos cômodos até o quarto onde ela começou a despir-se, distraída, automaticamente.)
Mas agora vinha ela com essa novidade de não mais querer, nem permitir e ainda jurar que nunca mais! Nem com ele nem com ninguém, ela gritara, possessa, possuída por algum demônio parido por seus medos religiosos. Quase disse que era pecado! Nua, linda e irada, os seios firmes apontando bicos acusadores como se ele fosse o culpado. Ora, se deus não quisesse que se fizesse tal uso não o teria posto, muito menos onde o colocou quando desenhou a mulher, e tampouco instilaria tal desejo no homem se não o permitisse! Não fora de deus a idéia de criar o mundo e todas as coisas que nele há, cuidando pessoalmente do planejamento e de sua execução? Se se tratasse de coisa anti-natural, como ela um dia ponderou, porque se moldaria tão bem o ânus ao pênis - certo que com alguma operosidade, mas o que é mais difícil não é melhor, não tem maior valia? E, não por outro motivo, era a forma de sexo que mais rendia, os homens valorizavam mais as mulheres que aceitavam fazer e mais ainda as que gostavam - ou fingiam gostar, o que para eles dava no mesmo! Foi um custo acalmá-la e conseguir que ao menos não se negasse à cópula usual e a felação. Sorriu para si ao lembrar da Waleska, a única travesti de seu plantel, também dotada de belas nádegas, embora ganhasse menos pela bunda e mais pelo pênis que tanto a enojava; ironia de deus: o mercado de travesti é formado por viados enrustidos e casais aventureiros. Claudinéia, no entanto, era a mais rentável de suas putas com aqueles seios, aquela carinha de colegial ingenuamente safada e aquela bunda! A mais calipígia de suas prostitutas.
(A vizinha do oitavo já estava vestida com um short e uma camiseta velha rasgada na altura da cintura e ele quase conseguia vislumbrar os seios flácidos escorrendo por baixo da bainha da camiseta. Alguns anos atrás ele tivera tesão naquela mulher. O tempo é cruel.)
Algumas coisas que vinha observando no comportamento de Claudinéia, uma queda no faturamento, conversas entreouvidas, fuxicos das colegas dela começaram a indicar a Caritênio que a coisa estava se degringolando e ele teria que fazer algo drástico, se não seria como a história da maçã podre em meio a frutas sadias. As outras putas poderiam se animar e estaria diante de um verdadeiro motim, com evasões e a completa perda de sua reputação e nome no meio. "Puta que não obedece ou é infiel, pau nela!", ensinou sua mãezinha, grande cafetina de antanho. Bebeu o resto do drinque. Encheu novamente o copo, esquecendo de repor gelo e água de coco. Recebera mesmo a informação, de fonte infelizmente que não era das mais fidedignas, que Claudinéia, por nome de guerra Michele, iria se bandear para outro cafetão de peso e ele não poderia aceitar assim passivamente aquela troca de guarda, não seria rendido de seu posto antes da hora que ele julgasse mais conveniente e somente livraria a cadela quando não mais houvesse renda a extrair dela.
(A vizinha do oitavo sumiu, devia ter isso ao banheiro. Ele se esqueceu dela.)
Haveria de submetê-la, haveria de alquebrá-la, ainda que causasse à mercadoria uma hérnia incapacitante. Não, isso ainda não. "Pau nela", ecoou na mente de Caritênio a voz perdida de sua mãe perdida. Ela chegou, ele largou o uísque e tomou do porrete. Era chegada a hora do relho no seu rendez vous. A seu modo, amava Michele e não abriria mão dela, não estava vencido, nem se daria por vencido assim tão facilmente, lutaria! O porrete era duro e pesado.
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