A ÚLTIMA VIAGEM
Raymundo Silveira

Há cerca de um semestre vinha perdendo muito peso e sentindo fortes e persistentes dores de estômago. A princípio - como de resto sucede a todas as pessoas -, concluí: "não haverá de ser nada; talvez simples indisposições pós-alimentares". Com efeito, todos nós pensamos que coisa ruim só acontece aos demais. No entanto, fui no mínimo um insensato, pois deveria haver desconfiado. Afinal sou um homem de cinqüenta e sete anos e - bem ou mal -, deram-me um diploma de médico. Não tinha, portanto, o direito de me iludir. Há mais ou menos dois meses fui ao Farias, meu colega de turma, gastroenterologista de renome e de minha inteira confiança. O que ouvi dele após a consulta, não foi nada tranqüilizador. "Você terá de se submeter a uma endoscopia; provavelmente seguida de biópsia". O exame não foi nada agradável, mas poderia ser comparado a uma "festa" diante daquilo que ouvi oito dias depois. A fisionomia do meu colega não era exatamente patibular, mas não deixava margem a dúvidas. "Tivemos, de fato, de realizar aquela biópsia, como já soubeste, pois encontramos um 'pólipo'. O material foi enviado para a Patologia; o resultado estará pronto somente amanhã, pois o Hemetério (o patologista) quer mostrar a lâmina a outros colegas". Fui operado há uma semana. Disseram-me haver o ato cirúrgico, demorado "apenas" noventa minutos. Isto para um leigo seria uma notícia "maravilhosa", mas para um médico... Passei cinco dias na UTI devido a uma "pequena complicação cardiorespiratória", disse-me o anestesista. Ontem pela manhã esteve aqui o Roberto. Amigo íntimo desde os tempos da Faculdade; leal, franco, realista, despojado de sentimentalismos piegas e me contou tudo. "Teu caso era inoperável; foi só abrir, olhar e fechar. Havia infiltrações generalizadas por todo o estômago, além de inúmeras metástases espalhadas pelos órgãos vizinhos. Tens, no máximo, trinta a quarenta dias; talvez sessenta. Estou te contando isto porque te conheço e estou ciente de que farias o mesmo comigo". Aquelas palavras, noutras circunstâncias, teriam me apavorado. Estaria passando, provavelmente, pela chamada fase de negação. Como há muito tempo já desconfiava de tudo, representou para mim quase um alívio, pois além de superá-la, ultrapassei também a fase de revolta e caí direto na de aceitação. Imediatamente após a saída de Roberto, fechei os olhos e passei na tela do meu cérebro um "videoteipe" compacto de toda a minha existência. Desde a época das minhas primeiras recordações até o momento atual. A vida é a escalada de um rochedo cuja ascensão se dá pela face menos íngreme e cuja descida - sempre fatal - ocorre pelo outro lado. Com a diferença de que este último encontra-se a pique; faz ângulo de noventa graus com a superfície do solo. Somos todos, por conseguinte, alpinistas natos e compulsórios. A subida é lenta, quase sempre penosa, e às vezes nunca se alcança o ponto culminante. A infância é a fase dos preparativos. Nela não há temor, cansaço nem desânimo. Sentimo-nos o centro do universo e achamos que o mundo todo está concentrado em nós outros. A primeira fase da escalada corresponde à juventude, onde tudo é entusiasmo e esperança. Daí até o terço superior do penhasco, é a maturidade; estamos, nesta altura, transitando da terceira para as quartas décadas. Entre a quinta e a sexta, atingimos - ou não - o topo, quando descobrimos a quase inutilidade de tantos esforços. Afinal, para quê tudo isto? Daí em diante é a descida; rápida para alguns, moderada ou lenta para outros, todavia, nunca revogável. Encontro-me, neste exato momento, em vias de despencar lá de cima. Passei a noite acordado embora haja recebido uma dose nada homeopática de um forte sonífero. Nunca me atraiu a luminosidade difusa da aurora durante minhas insônias, mas quando se está condenado, o sentimento acarretado pelo fenômeno é indescritível. A angústia é praticamente insuportável. Recusei o pequeno almoço; aliás, há mais de dois meses, a mera presença de qualquer alimento provoca-me náuseas intoleráveis. Às dez horas recebo a visita da mulher e dos filhos. "Como vais; estás melhor?" Não preciso falar; a resposta está estampada em minha fisionomia. "O Farias disse que vais te recuperar; vai demorar um pouco, mas vais ficar bom". Continuo sem responder. "Não queria falar disto agora, mas não há como adiar, pois o 'seguro doença' já telefonou três vezes dizendo haver duas prestações em aberto; e tu bem sabes que sem ele não há como quitar a conta do hospital que já vai alta. Peço que assines estes cheques; basta assinares, eu já os preenchi". Faço isso como um autômato, sabendo de antemão não se tratar de nenhum "seguro doença", mas de "pós-doença", pois possuo um excelente plano de saúde o qual inclui todas as despesas; auxílio funeral, inclusive. Sei de tudo isto, contudo disfarço. O filho caçula, de quinze anos, inquire-me abruptamente, "Pai, posso ficar com o 'Honda'?" Limito-me a sorrir com ironia. Contudo, pude perceber na fisionomia da mais velha um olhar estranho no qual identifico dois significados: um dirigido a mim e outro ao irmão. Para mim: "Como ousas falar disto a papai neste local e nestas circunstâncias?" Para ele: "Nem penses nisto seu puto; o 'Honda' é meu". Depois de mais algumas banalidades, despedem-se prometendo voltar na segunda-feira, pois amanhã é Domingo e não podem faltar ao churrasco na casa do Fábio que estará fazendo aniversário e há muito tempo já haviam prometido não faltar. Despedimo-nos sem nenhum calor humano. Duas lágrimas, porém, teimam em escorrer-me pelos cantos dos olhos. À noite, entra o Roberto. "Olá, companheiro, ânimo. Não podes ficar neste estado de depressão permanente. 'Ela' está aí na recepção, faz questão de te ver, quer falar contigo. Escolhemos este horário para evitar constrangimento diante de tua família". "Ela"! Que surpresa agridoce! Há quinze anos não a vejo. Desde a colação de grau onde fui o paraninfo de sua turma; sem dúvida por imposição "dela", uma líder nata. "Não Roberto, peço-te por tudo; não quero que 'ela' me veja nestas condições. Gostaria que recordasse sempre de mim como nos tempos felizes. Por favor, explique isto a 'ela'". "Tudo bem companheiro, farei o possível; mas estou certo de sua frustração. Agora tenho de ir; não posso faltar 'àquele' compromisso dos sábados de madrugada, lembras-te?" "Claro querido amigo e obrigado por tudo". As dores foram ficando quase insuportáveis. Disse à enfermeira que não tomaria soníferos, exceto uma dose dupla de Morfina. O plantonista aquiesceu em receitar. Há quinze minutos aplicaram-me as injeções. Acho... que agora é quase meia- noite... da madrugada do Domingo... penso que não... conseguirei... concluir... isto...

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