O
FIAPO
Mairy Sarmanho
Rendeu-se ao amor próprio. Quando subiu ao palanque, sentiu-se tão poderoso que ignorou sua condição de representante. Via apenas sua própria figura, repleta de holofotes, enfeitada pela faixa que não era tão grande, mas lhe dava o poder dos reis. Fechou os olhos e respirou fundo: havia ido mais alto do que jamais haviam acreditado possível: ele, um operário! Sorriu, chorou, consolou-se, gritou e cobrou atenção redobrada: tinha o direito. Assim pensava.
Lembrou-se de toda trajetória: o que havia tido de engolir, as humilhações, o ridículo, as agressões sofridas. Havia sido empurrado pelo destino e, talvez, pela raiva. Enterrar os sentimentos e abrir mão de seu orgulho: estava nu de si mesmo! Abanou, acenou e fez um ar de autoridade. Estava pronto para seguir seu destino.
Isso há cinco meses atrás. Agora, deitado na cama, ao lado da mulher, num hotel estrangeiro, parou, pela primeira vez depois disso tudo, para pensar. Quem, afinal, ele era? Estaria decepcionando aqueles que haviam apostado em seu instinto? Estaria falhando naquilo que sempre havia criticado? Estaria repetindo erros e mais erros, até a infâmia marca de ser tirado a força do lugar? Suspirou. Estava meio atordoado, arrastado no redemoinho de paixão e emoção que o havia tragado no primeiro dia do ano. Sabia que devia seguir em frente. Mas, para onde, mesmo?
Tinha medo de ficar como o velho da esquina, quando criança, que só olhava para o próprio umbigo. Podia-se dizer qualquer coisa, falar de qualquer assunto, que o velho conseguia encaixar-se no meio e criticar quem não compreendesse que ele era o único sofredor e a maior vítima de tudo. Havia um terremoto no Japão: o velho afirmava ter um tio morando lá e estava muito preocupado com sua saúde e destino. Uma guerra na Europa: o irmão era um soldado e podia ser atingido. Racionamento de farinha: como ele ia comer seus bolinhos? Remédios falsificados: ele ia morrer por não tomar, com certeza... Tudo girava em torno dele, como uma criança de dois anos, o velho tornava tudo pessoal e passional...
Sentiu vontade de urinar. Ergueu-se da cama, foi ao banheiro, acendeu a luz e quase gritou quando viu o fiapo. De sua virilha surgia um imenso fiapo verde, da grossura de três fios comuns, de cor brilhante, horrível, impossível de passar desapercebido. Tentou arrancá-lo com a mão, mas não conseguiu: aquela coisa agarrou-se à sua pele como um dinossauro, disposto a tudo para sobreviver!
Não urinou e voltou para cama com o coração batendo rápido, temendo que aquilo não fosse apenas um terrível pesadelo e sim a mais cruel das realidades. Dormiu mal o resto da noite, sonhando com coisas que havia esquecido há muito tempo atrás...
No dia seguinte, pela manhã, correu ao banheiro antes da mulher. Começou a chorar quando viu que o fiapo havia ganho um companheiro, ainda maior, mais brilhante e grosso do que ele. Tentou cortar com uma tesoura mas o infeliz resistiu. A mulher estranhou o tempo que estava no sanitário e entrou, irritada e curiosa. Quando viu os fiapos, começou a rir. Teve vontade de bater nela mas como não se bate em mulher...
Assim passaram-se as semanas: a cada dia nascia um novo fiapo de tal forma que já tinha dificuldades de abrigá-los nas cuecas, pois eram grossos demais e sempre pareciam desafiar a lei da gravidade. Pensou em procurar um médico mas tinha medo de que virasse fofoca, boato e, depois, revelação nacional. Calou-se, envergonhado, cheio de tufos verdes fluorescentes, escondidos em seu lugar mais íntimo...
Um dia, enquanto passeava com sua cachorrinha cheia de pedigrees, viu um minúsculo cãozinho vira-latas, sarnento e doente, acuado num canto, em uma praça. Ordenou que um dos seguranças o apanhasse e o levasse ao veterinário. Quando o animalzinho voltou, estava de banho tomado e tão limpo que nem mais parecia o mesmo. Mas ele sabia que era. Pegou o cão e levou-o para sua residência. Deu-lhe de comer e mandou que todos se retirassem, pois queria pensar um pouco.
Pensou no cão e em como havia começado. Pensou no cão e nas dificuldades. Pensou no cão e na multidão que esperava uma chance. Pensou no cão e no papel de bobo que estava fazendo. Pensou no cão e na raiva que sentiu dos que os contrariaram. Pensou no cão e em como se comportava mal. Pensou no cão e em como havia esquecido o passado. Pensou no cão e no velho que olhava apenas para seu umbigo. Pensou no cão e no próprio umbigo. Pensou no cão e olhou para a janela. Finalmente compreendeu o porquê dos tufos verdes. E desistiu de arrancá-los, pois sabia que os merecia. Pela desilusão causada.
Voltou para a praça e passeou com o cão de raça e com o vira-latas, cada um conduzido numa guia, lado a lado, sem ter medo de mostrá-los ou que se mordessem. Porque ele tinha esse poder e um tufo verde nas partes mais íntimas sancionava a lei do destino!
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