VELHA
INFÂNCIA
Luciana Priosta
Todos amam crianças a ponto de renunciar ao último filme de Wood Allen em favor dos animaizinhos falantes, certo? Afinal você aprendeu a pronunciar o nome desse diretor só para impressionar a morena que trabalha lá no escritório. Aquela com ar intelectual que só fala sobre livros que você nunca vai ler e índices econômicos que você nunca vai compreender. Mas tem um baita par de coxas. Mas o sacrifício de acompanhar crianças no cinema não é tão grande assim, seja sincero. Como poderia conhecer esses novos heróis de personalidades complexas e intrigantes? A muito você se rendeu aos novos heróis infantis. E aos vilões também. Convidar a morena para assistir A Era do Gelo é que não vai colar mesmo. Aparecer sozinho na fila, então? Nem pensar. As mães indignadas chamariam a polícia para que lhe prendessem como pedófilo ou seja lá como se chama esse tipo de tarado.
A única maneira, acredite, é mesmo arrebanhar umas crianças sob o pretextos de passar por tio legal. Elas lhe darão o álibi perfeito para curtir os personagens geniais desses novos filmes infantis. Só não entendo como a garotada compreende tantas nuanças de caráter. Ninguém é mais totalmente bom ou ruim. Os personagens infantis estão ficando cada vez mais humanos, e por isso cada vez mais complexos. Pelo menos é desse discurso que você irá sacar caso seja flagrado na saída do cinema pela morena do escritório.
Você já passou horas na loja de brinquedos namorando todos aqueles subprodutos da máquina de fazer doidos que é hollywood. Com um capuz puxado sobre o rosto para não ser reconhecido, claro. Jogos, mochilas, bonecos e mais toda a sorte de quinquilharias estampadas com as melhores fotos da fita (parênteses
irresistível: como alguém que ainda chama filme de fita pode sequer sonhar em assistir
a um filme infantil sem correr o risco de no mínimo passar ridículo?). Como resistir? Ah! Tão perfeitos, tão cheios de detalhes, só faltam falar. No seu tempo os brinquedos não eram tão reais. Vá lá, tinha o Falcon, mas não tinha fita (de novo!) do Falcon. E o Falcon nunca piscou para você. Aliás um dos bonecos estava realmente engraxando as armas ali naquela estante.
Tem gente que é assim, por no máximo o que? uma, duas horas de prazer, é capaz de grandes sacrifícios. Ou grandes burradas, depende do ponto de vista. Eu sou assim. Você é assim. Vamos assistir ao lançamento da temporada de férias junto com todas as crianças da rua, quiçá do mundo se necessário for! Mas comece apenas com os filhos do vizinho. Não se empolgue demais. Qualquer número de crianças que caiba apenas em uma das mãos. Mais que isso, é como contam algumas tribos africanas: é montão. Ou seja, demais para você. Cinco crianças. Não mais. E cuide para que tenha ao menos uma mais velha para que possa te ajudar a carregar os refrigerantes.
Um, dois... cinco. Melhor contá-los enquanto estão sob olhares de adultos mais responsáveis que você. Parecem domesticados perto dos pais. A fauna é bem variada: os gêmeos da Livia, um amiguinho encapetado e a irmã mais velha com o namoradinho. Namoradinho? O cara tem coleção de tatuagens, parece 10 anos mais velho que a menina e é procurado pela polícia, batata. Se ela não voltar grávida do cinema já será uma vitória. Sai o carro. Os namoradinhos não almoçaram. Vão se comer! As crianças excitadas, gritando e estapeando-se mutuamente. Difícil controlar crianças e dirigir ao mesmo tempo. A cada parada no farol, você distribui beliscões aleatoriamente. Logo todos se amontoarão no fundo do veículo. Fora do alcance de seus beliscões. O jeito é distribuir berros mesmo. Mentalmente, você começa a entoar um mantra: o filme vai valer o sacrifício, o filme vai valer o sacrifício, o filme vai valer o sacrifício,...
E na hora dos ingressos? Já viu como as crianças guardam dinheiro? Todas as moedas de um centavo, que afinal não compram nem chiclete, minuciosamente empilhadas e coladas com durex. A bilheteira não aceita durex, só moedas. Você desfaz os montes não sem deixar cair uma dúzia pelo chão. Desiste no primeiro pacote e enfia o resto no bolso criando um suspeito volume nas calças. As outras mães instintivamente enfiam suas crias embaixo das asas. Constrangido, você decide que pagará em cheque. Não aceitam cheque. Visa? Posso assinar umas promissórias? Os gêmeos gritando e empurrando a fila. Todo mundo olhando feio. Você acha que vai ser linchado ali mesmo. Quem é o (i)responsável por essas crianças? É você meu caro. Irremediavelmente você. Você ouve o comentário e morde a gola da camisa. Para não morder a orelha do cidadão.
Pipocas e refrigerantes distribuídos, está dada a contribuição para a manutenção do carpete. E para que a faxineira justifique seu salário. A sala escurece e começa o filme. Tio, não consigo fechar a calça. Que mãe doente compra uma calça de botões para um garoto de 5 anos? E o que é que esse garoto está fazendo com as calças abertas? Você jura solenemente a si mesmo nunca mais trazer estas pestes ao cinema! Nunca mais!
Mas, apesar de ter levantado pelo menos umas 200 vezes para ajudar o garoto com os botões da calça e outras tantas para tentar tirar o elemento tatuado de dentro da menina, o filme valeu! Os efeitos! O roteiro! Os personagens... ah... Você queria era ser criança do século 21! Não do tempo de heróis como o super homem. Não sei como ninguém nem desconfiava daquele óculos ridículos. E o topete então? Ele nunca despenteou nem cabelo! Vai voltar. Você sabe disso. Você TEM que ver o filme novamente. Mas terá que montar seu álibi. Digamos que a saga com as crianças seja assim uma espécie de purgatório, de passagem para o paraíso. É o preço a pagar, você já se rendeu. Sem elas, podem desconfiar de algo. Achar que você tem algum desvio mental. Ou (horror!) a morena das coxas grossas pode por em dúvida a sua virilidade. Te achar um gay mesmo.
Será que sua irmã empresta as crianças?
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