DORMIR COM TIGRES
Luís Valise

 
 
Cada encontro pode ser o último, assim ele busca guardar na memória detalhes de embalar insônia. Como sempre, chegou adiantado imaginando que ela talvez não venha, e seu coração agoniado bombeia o sangue com violência. Seus ouvidos zumbem um enxame de abelhas em volta da colméia. Ferroadas imaginárias tornam rubras suas faces, inoculando o veneno do ciúme, do desejo e da saudade. Das mesas em redor chegam fragmentos de histórias desinteressantes, entre risos de homens apressados e gestos de mulheres artificiais. Pede outro uísque, coragem para enfrentar o olhar onde dorme um tigre cor de mel. Uma pedra de gelo afunda na bebida, e ele imagina uma cauda de baleia em forma de coração antes do mergulho. Dois goles rápidos. Um sorriso premonitório. Ela chegou.

O quarto está escuro e ele mantém os olhos fechados. Suas pálpebras aprisionam o encanto do sorriso dela. Ele tem medo de abrir os olhos e deixar que ele escape. Quando isso acontece, aqueles lábios ficam flutuando pelas paredes do quarto, e é difícil capturá-los de novo. Soltos, não se deixam beijar. Cerra os olhos com mais força. Agora estão bem presos. Outra parte do seu cérebro mergulha no mar das lembranças, e traz a cor da boca, e o calor da pele, e ele a beija novamente. Ela também fecha os olhos quando beija, e suas bocas ficam juntas até que estar acordado se torna impossível, então ele se rende e ela escapa para outros beijos, outras bocas, outros sonhos.

Ela também pede um uísque, e ele logo descobre por que. Aos poucos o tigre cor de mel desperta, e ameaça saltar sobre a mesa. Ele sente a carícia da sua pata invisível sobre seu braço. Precisa guardar os detalhes na memória para enfrentar as noites vivas. A bebida escorre por entre a conversa; ele sente um toque do tigre sob a mesa. A perna da mulher está tão perto como quase nunca. Ele pode baixar a mão e agarrar sua coxa. Por que não? Reforça a dose. Mexe as pedras de gelo com os dedos. Baixa a mão... não ousa, pega o guardanapo e apenas enxuga os lábios. Tenta cavalgar o tigre com o olhar, mas o animal percebe, e apenas passa a língua sobre os lábios vermelhos. Aquilo é demais para ele, que tenta inutilmente manter-se sobre o dorso macio da fera. Obrigado a baixar o olhar, vê os pés da mulher em minúsculas sandálias, pequenos, perfeitos, enfeitados com unhas delicadas e flamejantes.

Envolto pela escuridão, seus olhos estão fechados, e o rosto enfiado no travesseiro. Nenhuma fímbria de luz. Ela vem chegando de mansinho. Rodeia seu corpo estendido sobre o lençol. Se deita ao seu lado, acaricia suas coxas com os pés, as unhas acetinadas deixando pequenas marcas em meia-lua, que vão-lhe subindo pelas costas, nuca, até roçar a barba áspera. Ele beija-lhe os pés, as pernas, as coxas, repousa a cabeça sobre suas coxas, lembra do mergulho da baleia com cauda em forma de coração, sente cheiro de mar, abre suas coxas, o beijo na rosa de pétalas de fogo, e o tigre se rende, e suas garras traçam linhas finas em suas costas antes de fugir para dentro do sonho. 

Não traçam planos. O futuro foi ontem. O passado estará presente. Falam no que não pensam, assim como quem faz piquenique à sombra de um vulcão. Ele jamais falará que adora seus olhos, sua boca, seus pés. Ela jamais dirá que sonhou que arranhava suas costas. Um tigre enjaulado na memória do nunca.
 
 

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