O
DIA EM QUE O REI MOMO SE ELEGEU PREFEITO
Fernando Zocca
I
Estávamos no outono e a temperatura, naquela noite de sexta-feira seca, beirava aos 10 graus ali no interior de S. Paulo. As ruas da cidade média autovalorada achavam-se desertas a não ser por aquele indigente decrépito que vagava resmungando.
Um grupo de caça mendigos, que na noite anterior, havia combinado incendiar o primeiro esmolambado que lhe surgisse pela frente, não notou a presença do inopioso, quando no automóvel importado, passou por ele, em alta velocidade.
O frio e a fraqueza, porém, fizeram com que ele parasse defronte a porta larga duma loja, e sob os efeitos constringentes da situação adversa invencível, deitou, dormiu e pereceu exalando, ali mesmo, seu último suspiro.
O corpo, regélido e malcheiroso, coberto por moscas esvoaçantes e formigas vorazes, amanheceu debaixo da marquise provocando a curiosidade dos transeuntes.
II
O empresário abespinhado, na manhã de sábado, quando se preparava para ler no jornal volumoso, as vicissitudes da Ferrari, e ao sentar-se abruptamente naquela cadeira rangente, percebeu o quanto seu ventre abaulado restringia-lhe os movimentos corpóreos.
Os ruídos estridulosos, daquele telefone, assustando-o, quase tiraram dele um xingamento irado. Inibiu-se, porém, ao ouvir a voz maviosa da interlocutora que lhe comunicava a obrigação, originária dos contratos, de retirar o cadáver dum indigente, jazido lá na rua principal.
Expelindo impropérios, em voz baixa, de modo que não atiçasse a sucetibilidade da vizinhança, largou o calhamaço, convocou aos berros o auxiliar entorpecido, e saiu pisando firme. Com seu carro funerário mortiço arrancaram na direção do objetivo.
Ao chegar afastou os curiosos, que antes haviam protegido o defunto, com jornais velhos, e ordenou ao empregado, que pusesse o finado no caixão metálico. O destino, então agora, seria o necrotério.
III
No escritório envidraçado, caminhando em círculos, sobre o carpete empoeirado, José Escábio, o vendedor, esforçava-se para saber de onde viria o próximo pagamento. Lembrou-se do devedor, proprietário dum posto de gasolina, que ficava logo alí, quase defronte a faculdade de ciências médicas. Tomou seu carro preto e pensando , preocupado, na ausência da carteira de motorista, que lhe fora cassada, arremeteu com esperança de receber o que lhe era devido.
Durante o trajeto refletia no licenciamento do carro e nas demais obrigações que não conseguia solver. Ao passar pela rua central notou um aglomerado esquisito que se formava defronte a loja súpera. Reparou que os funcionários funéreos encaixotavam um corpo sem vida. Na esquina próxima, a figura do policial lembrou-o de que seus documentos não estavam em ordem e isso causava nele uma certa angústia. Mas afinal, quantos seguros deveria ainda vender para tranquilizar-se naquele ano?
IV
Jorge F. Guandira, o médico que não era monstro, mas que se via, no momento, atingido pela avalanche de cobradores chatos e pernósticos, dismilinguia-se ante o poder dos credores. Não conseguia mais conciliar o sono; exagerava nas doses de antidepressivos para manter-se ligado. A sorte dele é que no final da semana haveria uma festinha desopilante no apartamento da imergente Vera Layout, a socialite que adernava igual ao Lindenberg antes do incêndio, e ao Kursk russo.
Jorge estava assoberbado com as ocorrências e tremelicava ao menor estímulo. Tentava livrar-se do grude viscoso dos adversos e por isso passou a reler "O Poder da Sugestão". Era um livro enorme e pesado, com capas verde-alface, que seu avô materno trouxera da Espanha; continha algumas dicas para quem se achava sob as influências da ira, igual a ele.
Guandira vivia sob uma espécie de desafio: se quem fez o que ele fizera permanecesse ainda vivo para contar a história, então era sinal mesmo que o mundo velho já não era mais o que sempre tinha sido; e que os mandões obscurantistas vingativos terminavam seu poder, cedendo-o ao amor cristão.
Que o senhor tivesse piedade.
V
Na sala ampla do apartamento luxuoso, os convidados, aos pares cavaqueavam joviais; com seus drinques, nas taças importadas de cristal, punham-se cada vez mais alegres, sob os efeitos euforizantes do champanhe fancês. Ao fundo,a música suave, garantia harmonia e bom tom.
César abespinho chegou à festa e foi recepcionado pela anfitriã, que com mesuras mil, deixou-o à vontade. Ele percebeu, logo ao entrar, o predomínio das vestes brancas. Dirigiu-se ao grupo formado por conhecidos seus. Lá estava o Zé Escábio, vendedor titiloso, que em papos de aranha, não via como quitar seus compromissos vendendo seguros. Ele parolava, descontraído, com o famígero doutor Jorge F. Guandira. Quando se achegou, foi bem recebido pelos amigos esfuziantes, esquecidos da problemática sem soluções aparentes.
Na troca de experiências, chegaram ao entendimento de que se fizessem seguros em nome de alguém conhecido e que se esse alguém "morresse", teriam, como beneficiários, prêmios equivalentes aos das loterias.
E, foi, para encurtar a história, o que eles fizeram: adquiriram, para experiência, uma apólice em nome dum irmão do Abespinho; a beneficiada era a "mais melhor de boa", vitaminada e sarada, porém "anarfa", empregada faxineira da funerária. Oito meses depois Jorge F. Guandira forneceu o atestado de óbito declarando a "morte" do segurado, que na verdade viajou com a amante para um sítio no interior de Minas. O indigente, que morrera naquela noite de sexta-feira, atrapalhando o trânsito, saindo finalmente do congelador, foi enterrado no seu lugar.
Os golpes, contra as seguradoras, secederam-se no tempo até que, por motivos ainda a serem apurados, tudo foi descoberto. No dia, em que os fatos vieram à lume, o balofo pimpão, que sempre alegrara os carnavais baços da cidade perdida nos fins das linhas férreas, foi eleito prefeito, para o gáudio da escuma que o apoiava.
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