MÃOS
AO ALTO
Doca Ramos Mello
Arre que a batatinha era mesmo uma formosura! Nasceu daquele jeitão próprio dela, na maior boa, e brotava do chão quase sem cerimônia, você piscava o olho e, de repente, lá jazia ela, se espalhando pelo chão e favorecendo a rima ingênua... Paralelamente, a menininha também cumpria sua marcação na peça, com grande espontaneidade e encantamento, dormindo sua infância de saias rodadas, com a mão no coração - meiguice pura. Era tudo assim, simples, direto, reto, sem sustos. Uma bênção.
Mas, acabou, sumiu, ninguém sabe, ninguém viu...
E sumiu porque o tempo não pára, os ventos mudam tudo de lugar, as verdades se refazem, os conceitos se renovam, e cobra que não
anda não engole sapo. Ah! Também por causa do homem, ô praga! Foi Deus ser mais simpático com ele e lhe conferir a dádiva de alguns miolos diferenciados, uma língua falante para argumentar e certo poder de decisão, inclusive sobre a natureza e outros animais, e ele saiu pelo mundo, dando safanões nos próprios neurônios, cheio de idéias na cabeça.
No início, barra" Houve todo tipo de entrave bravo, como dinossauros, terremotos de abrir o mundo em dois, trovões enviados por deuses das trevas, dentes encavalados, mistérios... E ainda não havia penico, relógio de algibeira, telefone, salsinha desidratada, uma saga! "Tem muita coisa aqui p'ra arrumar, descobrir, fabricar, rever, é tudo muito empírico, simplório, rude", pensou o homem.
Assim, começou a botar reparo nas criações divinas, a duvidar da eficácia dos mandamentos do Senhor, a questionar princípios, a fuçar a vida. E encasquetou em inventar máquinas, reinventar sentimentos, inovar diretrizes, e foi tomando conta de tudo, mexendo em tudo. Séculos a fio, fez descobertas, desvendou mistérios, aprendeu a ler o tempo, deu nome aos bois, compôs músicas, criou os psicólogos, e mapeou os recantos mais profundos de si mesmo, na ilusão de dominar o mundo que Deus emprestou para ele: o homem quer tudo, o homem acha que tudo pode. Por isso...
...Não haveria de dar mole para a batatinha, certo?
"O que faz aqui tal batatinha rústica, sem método nenhum, sem charme, uma tese de doutorado?", questionou com a modernidade.
Então, inventou que era preciso imprimir um ritmo mais profissional ao cultivo da batata, arar a terra, adubar o terreno, plantar, regar com métrica, borrifar pesticida, espantar predadores, eliminar a tiririca, ficar de olho, colher, examinar, classificar, catalogar, produzir batata modificada, enlatar, exportar...! Instalou-se o caos batatístico que desaguou no advento local das batatinhas chips - pronto. Americanizamos nossa batatinha, eis que já podemos olhar nos olhos de Tio Sam sem fazer vergonha aos nossos brios tupi-guaranis, Deus seja louvado, que a gente não está aqui para ser rotulado de povo atrasado, God bless Brazil e vamo' que vamo'!
A menininha, por sua vez, radicalizou o discurso, vai lá querer saber de recitar?! "Recitar... Como assim, tipo...?" E pôr a mão no coração... Fala sério! Ela acha aquela coisa de saia comprida que se abre para os lados e levanta as beiradas, fazendo um leque, totalmente "out". Na cabecinha fashion dela, talvez topasse uma minissaia bem louca, de jeans stone washed rasgada, um top maneiro, óculos "mosca", muito batom, uma jaqueta surrada por cima, umbigo de fora com piercing, botas de cano alto tipo soldado (com cordões devidamente relaxados, soltos, arrastando no chão), tipo assim, caraca... E tudo, de preferência, preto, dark, porque black is beautiful e heavy é da hora, falô... Aí, quem sabe rolava... Verso? Nem vem.
Enfim: a batatinha já era. Os tempos mudaram, a batata pirou de vez, a menininha virou tween e você aí, mãos ao alto! Renda-se, criatura. Se não quiser ficar por fora desta onda, compre logo um cd da Kelly Key-Não-Canta-Nada e ensine sua filhota a declamar, digo, a cantar, rebolando muito, o venha aqui, agora estou mandando, vem meu, meu cachorrinho, a sua dona tá chamando - uma inspiração deste quilate e você com saudosismo de batatinha...?!
Saudade não leva a nada, não reclame, há muitas opções na praça e sua menininha, por falta de incentivo doméstico e orientação pode fazer escolhas mais perturbadoras, pode, por exemplo, cair para os lados do poema cantado que diz vai, lacraia, vai, lacraia... Não se omita e veja aí com que rimas você pretende alimentar a infância dentro da sua casa, sua alma, sua palma.
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