PURO E BESTA
(autobiografia - parte 6.756 de 14.600)
Beto Muniz

 
 

Tinha dezoito anos quando cheguei em São Paulo. Não era inocente, nem puro e muito menos besta. Era alto e magro, extremamente magro, e cultivava um bigodinho ralo de menino querendo parecer homem... Talvez eu fosse um tantinho assim besta.

Peguei carona num caminhão de madeira que me deixou em Matão, interior do estado, e foi pedindo carona que me aproximei da capital. Vim para a cidade grande contra a vontade de minha mãe e desafiando meu pai que duvidava das qualidades que eu teimava possuir. Os desafios impensados seriam uma constante na minha vida – isso sei agora. Nos incolores anos oitenta eu era apenas um molecote abusado que acreditava ser capaz de sobreviver sem pedir ajuda a ninguém. Com certeza, tudo que precisava era encontrar rapidamente um emprego e mostrar que poderia, sim, viver livre de regras domésticas, de horários para chegar em casa e sem interferência paterna. Estava obstinado a não pedir socorro aos tios, avós e amigos da família que moravam em São Paulo. Começaria do zero e venceria. Num simbolismo que mascarava a fé e o medo, propus-me a decidir os rumos da nova vida exatamente no marco zero da cidade: em frente a catedral da Sé.

Desci do trem que me trouxera de Jundiaí até a Estação da Luz e caminhei, orientado por taxistas e policiais, até a praça da Sé. No marco zero decidi viver na região oeste da cidade. Não sei exatamente qual critério usei, mas lembro que era apaixonado pelas histórias de caubóis e heróis americanos que colonizaram o velho oeste. Na mochila eu carregava meia dúzia de revistas do Tex e um livro que contava a história de Wyatt Earp. Destemido como um colono americano, tomei o rumo da Rua Benjamin Constant. No primeiro ponto de ônibus solicitei maiores informações: bairro da Lapa. Subi. Alguns minutos depois desci na Rua Guaicurus, em frente ao Shopping Center Lapa. Sempre pedindo informações, cheguei na Rua Clélia e aluguei uma vaga na pensão da Dona Ziza. Se decidisse por um quarto individual com duas refeições diárias, meu dinheiro daria para um mês; se, no entanto, escolhesse dividir um quarto com mais três pessoas, e duas refeições diárias, a mesma quantia era suficiente para três meses de aluguel. Bom senso! Paguei dois meses adiantados. Dona Ziza riu quando pedi que não me devolvesse dinheiro algum mesmo que eu resolvesse ir embora antes do combinado. Era uma boa mulher e deve ter me considerado um rapaz inocente e puro.

Os três colegas de quarto eram operários que antes das cinco da manhã despertavam para o trabalho, e toda madrugada eu era acordado por ruídos e impropérios. Quando reclamava era pior. Eles debochavam me chamando de preguiçoso, mesmo sabendo que eu não precisava acordar cedo. Meu primeiro emprego foi como vendedor de sapatos na praça do Correio e meu turno de trabalho começava às quatorze horas. Invariavelmente eu retribuía os deboches da madrugada acordando-os por volta da meia-noite, hora em que chegava do trabalho. As provocações aconteceram até o dia que um deles partiu para a briga. Fizemos uma algazarra e Dona Ziza me trocou de quarto. Fiquei com um olho roxo, mas o estrago no adversário foi maior. Acredite!

Apenas onze dias após a chegada em São Paulo consegui emprego na loja de calçados. Um parente da Dona Ziza era gerente na matriz, QI é muito importante. Comecei a trabalhar, sem registro em carteira, numa filial do centro. Eu achei que a experiência de anos auxiliando papai a atender clientes no mercado da família seria o suficiente, mas não foi. Eu não era bom em vendas. Quinze dias depois de empregado cheguei na pensão e fui fazer contas. A comissão acumulada não daria para pagar nem a Dona Ziza, pois depois de começar a trabalhar contei com o pagamento e me mudei para um quarto individual. E mais, almoçava na pensão e jantava numa lanchonete ao lado da loja. Precipitação! Se continuasse no mesmo ritmo, a lanchonete e a condução comeriam todo o ganho acumulado em um mês de vendas. Comecei a ficar desesperado. Por mais uma quinzena teria onde almoçar e dormir, mas e depois? Depois eu não tinha nem idéia, mas na hora decidi que era o caso de arrumar mais um emprego – meio período pela manhã, pensei. Ou então outro emprego em período integral perto da pensão, assim poderia eliminar a condução e economizar na refeição. A comida da Dona Ziza era bem melhor e mais barata que a da lanchonete. Pensei em milhões de possibilidades e só não pensei em desistir.

Havia uma concessionária de motos Honda bem em frente a pensão e, qual desbravador americano diante duma planície ocupada por garanhões selvagens, eu perdia alguns minutos todas as manhãs admirando aqueles cavalos modernos (terrível essa comparação, mas a biografia é minha. Não te mete!). No dia seguinte acordei cedo e fui até a loja, conversei com um funcionário e disse que gostava de motos e queria saber se tinha algum trabalho. Qualquer um. Apesar da boa vontade do sujeito, que era um dos sócios, não consegui o trabalho. Caminhando meio sem destino, fui parar no shopping Lapa. Na administração tentei, sem sucesso, um emprego. Tentei as lojas, nada. Em quatro manhãs eu visitei todos os estabelecimentos em torno do Shopping e da pensão, sem conseguir nada. No quinto dia de procura, retornei ao meu quarto e me preparei para vender sapatos como fazia todos os dias. Estava cansado e desanimado, mas lembrei que seria dia de receber meu primeiro salário na nova vida. Quinze dias de suor seriam materializados em notas de dinheiro que me sustentariam por mais uma quinzena. Bem ou mal (ou seria mau?) o meu trabalho já estava me mantendo - pensei. Pagaria a lanchonete e compraria alguns passes de ônibus. A caminho da praça do Correio relembrava a discussão com meu pai, as lágrimas de minha mãe, e o assombro dos meus irmãos enquanto eu saia de casa carregando tudo que tinha numa maleta e uma mochila. Lembrei dos parentes que moravam em São Paulo e ainda não visitara. Lembrei da minha avó que morava na Freguesia do Ó, bem próximo a pensão. Lembrei tantas coisas vividas até aquele dia e me senti adulto, dono do meu destino, senhor da minha vida. Um vencedor! Esqueci do desânimo, do cansaço e também que o dinheiro a receber não seria suficiente. O ônibus sacolejava passando diante do parque da Água Branca e eu pairava feliz acima de qualquer desconforto. Eliminando os detalhes, eu era um vencedor sorrindo para o verde do parque que ficava para trás.

Cinco da tarde, o gerente entregou um envelope contendo meu primeiro salário em São Paulo. Continuei atendendo e minha euforia, sentindo o volume do envelope no bolso da calça, contagiava até os ânimos dos clientes. Vendi bem. Ninguém que atendi saiu sem comprar ao menos um par de chinelos. Sete e meia da noite estava pronto para ir a lanchonete jantar e pagar a dívida quando entrou o ladrão. Em princípio me pareceu mais um cliente, então fiz a abordagem padrão e me coloquei a disposição para atendê-lo. Como num filme de faroeste a arma surgiu nas mãos do bandido antes que o mocinho pudesse esboçar qualquer reação. Acostumado com armas, pois desde criança que manejava cartucheiras e winchester's nas caçadas aos predadores do sítio em Minas Gerais, eu nunca tivera uma delas apontada para esse ponto bem ao centro dos olhos. Sabendo o estrago que uma arma pode causar, obedeci ao comando do assaltante e andei em direção ao caixa. A distância era pequena, mas cada vez que meus pés tocavam o solo, eu relembrava uma história da violência paulistana. Mortes brutais e gratuitas, daquelas que todos os dias apareciam estampadas em jornais e revistas, eram parte da realidade próxima de ser vivenciada. Eu não estava pronto para morrer! Eu não saíra de casa para ser assassinado numa loja do centro de São Paulo. A arma do bandido estocando minhas costelas devolvia o medo esquecido em Minas e me fazia perceber que ainda não era um homem. Era pouco mais que uma criança. Dependia sim da proteção do meu pai, e mais que isso, do carinho de minha mãe, da companhia dos meus irmãos. Durante todo o tempo que durou o assalto fui a primeira opção de alvo. Após retirar o dinheiro do caixa, o bandido, já com o auxílio de mais dois comparsas, começou a exigir os bens pessoais do gerente, dos clientes e dos funcionários. Nesta ordem. Senti a mão do sujeito arrancando minha carteira e acompanhei meu envelope ser passado de mão em mão até ser enfiado dentro de um saco de papel pardo. Durante a breve viagem do envelope algo se quebrou dentro de mim. Não sabia e ainda não sei bem o que era, mas ele sumindo dentro do saco pardo foi como um cair de noite repentino. Não lembro o que aconteceu em seguida, só recordo que nunca mais voltei à loja de calçados. Nem à lanchonete. A única lembrança daquela noite é ter deixado o centro da cidade no último ônibus da noite. Cheguei à pensão em silêncio para não acordar ninguém e, pela manhã, quando os operários do quarto ao lado saíram para trabalhar, eu também saí, levando todas minhas posses. Aos bens que trouxera de Minas Gerais tinha acrescentado um par de tênis. Antes das seis da manhã eu bati na porta da casa da minha avó. Estava pedindo arrego.

(fim da primeira parte)

 
 

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