Tinha dezoito
anos quando cheguei em São Paulo. Não era inocente, nem puro e muito menos
besta. Era alto e magro, extremamente magro, e cultivava um bigodinho
ralo de menino querendo parecer homem... Talvez eu fosse um tantinho assim
besta.
Peguei carona num caminhão de madeira que me deixou em Matão, interior
do estado, e foi pedindo carona que me aproximei da capital. Vim para
a cidade grande contra a vontade de minha mãe e desafiando meu pai que
duvidava das qualidades que eu teimava possuir. Os desafios impensados
seriam uma constante na minha vida – isso sei agora. Nos incolores anos
oitenta eu era apenas um molecote abusado que acreditava ser capaz de
sobreviver sem pedir ajuda a ninguém. Com certeza, tudo que precisava
era encontrar rapidamente um emprego e mostrar que poderia, sim, viver
livre de regras domésticas, de horários para chegar em casa e sem interferência
paterna. Estava obstinado a não pedir socorro aos tios, avós e amigos
da família que moravam em São Paulo. Começaria do zero e venceria. Num
simbolismo que mascarava a fé e o medo, propus-me a decidir os rumos da
nova vida exatamente no marco zero da cidade: em frente a catedral da
Sé.
Desci do trem que me trouxera de Jundiaí até a Estação da Luz e caminhei,
orientado por taxistas e policiais, até a praça da Sé. No marco zero decidi
viver na região oeste da cidade. Não sei exatamente qual critério usei,
mas lembro que era apaixonado pelas histórias de caubóis e heróis americanos
que colonizaram o velho oeste. Na mochila eu carregava meia dúzia de revistas
do Tex e um livro que contava a história de Wyatt Earp. Destemido como
um colono americano, tomei o rumo da Rua Benjamin Constant. No primeiro
ponto de ônibus solicitei maiores informações: bairro da Lapa. Subi. Alguns
minutos depois desci na Rua Guaicurus, em frente ao Shopping Center Lapa.
Sempre pedindo informações, cheguei na Rua Clélia e aluguei uma vaga na
pensão da Dona Ziza. Se decidisse por um quarto individual com duas refeições
diárias, meu dinheiro daria para um mês; se, no entanto, escolhesse dividir
um quarto com mais três pessoas, e duas refeições diárias, a mesma quantia
era suficiente para três meses de aluguel. Bom senso! Paguei dois meses
adiantados. Dona Ziza riu quando pedi que não me devolvesse dinheiro algum
mesmo que eu resolvesse ir embora antes do combinado. Era uma boa mulher
e deve ter me considerado um rapaz inocente e puro.
Os três colegas de quarto eram operários que antes das cinco da manhã
despertavam para o trabalho, e toda madrugada eu era acordado por ruídos
e impropérios. Quando reclamava era pior. Eles debochavam me chamando
de preguiçoso, mesmo sabendo que eu não precisava acordar cedo. Meu primeiro
emprego foi como vendedor de sapatos na praça do Correio e meu turno de
trabalho começava às quatorze horas. Invariavelmente eu retribuía os deboches
da madrugada acordando-os por volta da meia-noite, hora em que chegava
do trabalho. As provocações aconteceram até o dia que um deles partiu
para a briga. Fizemos uma algazarra e Dona Ziza me trocou de quarto. Fiquei
com um olho roxo, mas o estrago no adversário foi maior. Acredite!
Apenas onze dias após a chegada em São Paulo consegui emprego na loja
de calçados. Um parente da Dona Ziza era gerente na matriz, QI é muito
importante. Comecei a trabalhar, sem registro em carteira, numa filial
do centro. Eu achei que a experiência de anos auxiliando papai a atender
clientes no mercado da família seria o suficiente, mas não foi. Eu não
era bom em vendas. Quinze dias depois de empregado cheguei na pensão e
fui fazer contas. A comissão acumulada não daria para pagar nem a Dona
Ziza, pois depois de começar a trabalhar contei com o pagamento e me mudei
para um quarto individual. E mais, almoçava na pensão e jantava numa lanchonete
ao lado da loja. Precipitação! Se continuasse no mesmo ritmo, a lanchonete
e a condução comeriam todo o ganho acumulado em um mês de vendas. Comecei
a ficar desesperado. Por mais uma quinzena teria onde almoçar e dormir,
mas e depois? Depois eu não tinha nem idéia, mas na hora decidi que era
o caso de arrumar mais um emprego – meio período pela manhã, pensei. Ou
então outro emprego em período integral perto da pensão, assim poderia
eliminar a condução e economizar na refeição. A comida da Dona Ziza era
bem melhor e mais barata que a da lanchonete. Pensei em milhões de possibilidades
e só não pensei em desistir.
Havia uma concessionária de motos Honda bem em frente a pensão e, qual
desbravador americano diante duma planície ocupada por garanhões selvagens,
eu perdia alguns minutos todas as manhãs admirando aqueles cavalos modernos
(terrível essa comparação, mas a biografia é minha. Não te mete!). No
dia seguinte acordei cedo e fui até a loja, conversei com um funcionário
e disse que gostava de motos e queria saber se tinha algum trabalho. Qualquer
um. Apesar da boa vontade do sujeito, que era um dos sócios, não consegui
o trabalho. Caminhando meio sem destino, fui parar no shopping Lapa. Na
administração tentei, sem sucesso, um emprego. Tentei as lojas, nada.
Em quatro manhãs eu visitei todos os estabelecimentos em torno do Shopping
e da pensão, sem conseguir nada. No quinto dia de procura, retornei ao
meu quarto e me preparei para vender sapatos como fazia todos os dias.
Estava cansado e desanimado, mas lembrei que seria dia de receber meu
primeiro salário na nova vida. Quinze dias de suor seriam materializados
em notas de dinheiro que me sustentariam por mais uma quinzena. Bem ou
mal (ou seria mau?) o meu trabalho já estava me mantendo - pensei. Pagaria
a lanchonete e compraria alguns passes de ônibus. A caminho da praça do
Correio relembrava a discussão com meu pai, as lágrimas de minha mãe,
e o assombro dos meus irmãos enquanto eu saia de casa carregando tudo
que tinha numa maleta e uma mochila. Lembrei dos parentes que moravam
em São Paulo e ainda não visitara. Lembrei da minha avó que morava na
Freguesia do Ó, bem próximo a pensão. Lembrei tantas coisas vividas até
aquele dia e me senti adulto, dono do meu destino, senhor da minha vida.
Um vencedor! Esqueci do desânimo, do cansaço e também que o dinheiro a
receber não seria suficiente. O ônibus sacolejava passando diante do parque
da Água Branca e eu pairava feliz acima de qualquer desconforto. Eliminando
os detalhes, eu era um vencedor sorrindo para o verde do parque que ficava
para trás.
Cinco da tarde, o gerente entregou um envelope contendo meu primeiro salário
em São Paulo. Continuei atendendo e minha euforia, sentindo o volume do
envelope no bolso da calça, contagiava até os ânimos dos clientes. Vendi
bem. Ninguém que atendi saiu sem comprar ao menos um par de chinelos.
Sete e meia da noite estava pronto para ir a lanchonete jantar e pagar
a dívida quando entrou o ladrão. Em princípio me pareceu mais um cliente,
então fiz a abordagem padrão e me coloquei a disposição para atendê-lo.
Como num filme de faroeste a arma surgiu nas mãos do bandido antes que
o mocinho pudesse esboçar qualquer reação. Acostumado com armas, pois
desde criança que manejava cartucheiras e winchester's nas caçadas aos
predadores do sítio em Minas Gerais, eu nunca tivera uma delas apontada
para esse ponto bem ao centro dos olhos. Sabendo o estrago que uma arma
pode causar, obedeci ao comando do assaltante e andei em direção ao caixa.
A distância era pequena, mas cada vez que meus pés tocavam o solo, eu
relembrava uma história da violência paulistana. Mortes brutais e gratuitas,
daquelas que todos os dias apareciam estampadas em jornais e revistas,
eram parte da realidade próxima de ser vivenciada. Eu não estava pronto
para morrer! Eu não saíra de casa para ser assassinado numa loja do centro
de São Paulo. A arma do bandido estocando minhas costelas devolvia o medo
esquecido em Minas e me fazia perceber que ainda não era um homem. Era
pouco mais que uma criança. Dependia sim da proteção do meu pai, e mais
que isso, do carinho de minha mãe, da companhia dos meus irmãos. Durante
todo o tempo que durou o assalto fui a primeira opção de alvo. Após retirar
o dinheiro do caixa, o bandido, já com o auxílio de mais dois comparsas,
começou a exigir os bens pessoais do gerente, dos clientes e dos funcionários.
Nesta ordem. Senti a mão do sujeito arrancando minha carteira e acompanhei
meu envelope ser passado de mão em mão até ser enfiado dentro de um saco
de papel pardo. Durante a breve viagem do envelope algo se quebrou dentro
de mim. Não sabia e ainda não sei bem o que era, mas ele sumindo dentro
do saco pardo foi como um cair de noite repentino. Não lembro o que aconteceu
em seguida, só recordo que nunca mais voltei à loja de calçados. Nem à
lanchonete. A única lembrança daquela noite é ter deixado o centro da
cidade no último ônibus da noite. Cheguei à pensão em silêncio para não
acordar ninguém e, pela manhã, quando os operários do quarto ao lado saíram
para trabalhar, eu também saí, levando todas minhas posses. Aos bens que
trouxera de Minas Gerais tinha acrescentado um par de tênis. Antes das
seis da manhã eu bati na porta da casa da minha avó. Estava pedindo arrego.
(fim da
primeira parte)
|