NÃO HÁ MAIS
NADA PARA TOMAR DE VOLTA
Anna Carolina N. Fagundes
“Everything we've ever stolen
Has been lost returned or broken
No more dragons left to slay.
Every mistake I've ever made
Has been rehashed and then replayed
As I got lost along the way…”
(Robbie Williams, “The Road to Mandalay”)
Se não há mais nada a não ser a rendição completa que está na minha frente, que seja assim. Não é como eu gostaria que fosse, mas tanto melhor que seja essa a decisão, e não outra coisa pior, se é que existe algo pior no estoque. Tudo o que eu amo foi destruído, tudo o que eu tinha foi roubado ou então tomado de volta. De certo modo, tanto melhor que seja assim.
Tudo o que eu queria, de certo modo, era que as pessoas notassem o quão bonita e inteligente eu era, e no final (agora que eu estou aqui, na sua frente, apoiada em uma bengala sem ter nem mesmo quarenta anos, morrendo na sua frente) as pessoas só notaram que eu era a esposa-troféu de um homem rico e poderoso, mas sem nenhum valor moral.
Eu era o prêmio, a conquista mais visível, a vitrine das jóias e das peles que meu rico consorte podia pagar. Mas nunca fui amada por ele, e eu carrego isso comigo agora. Ele está morto, logo eu também vou estar, e carrego esse fardo comigo.
Você me pergunta porque eu aceitei ficar com ele, e porque permaneci com ele mesmo depois de várias insistências suas. Eu sei de seu amor por mim (eu ainda posso senti-lo, por detrás da couraça que você ergueu para o mundo exterior), eu sempre soube que você me daria uma existência mais digna, quem sabe mais feliz. Por que eu não fiz a troca, por que me rendi por tão pouco?
Porque eu sempre fui ensinada a ser rendida por tão pouco. Jóias e peles têm valor financeiro, mas elas nunca eram suficientes para pagar a fiança da minha prisão. Quanto mais eu tinha, pior eu estava, e eu achava que estava melhor. Amantes jovens, perfumes caros, viagens ao redor do mundo, diamantes e rubis – e quando eu estava sozinha, quando acordava sozinha, eu percebia que tinha sido rendida por muito pouco, por um punhado de areia colorida, por miçangas e espelhos. E eu ainda assim recusei você, porque acreditava que era assim que a vida tinha que ser.
E você uma hora desistiu por completo da espera, da caçada, da busca. Como todos os outros, você cansou-se de mim e foi buscar sua vida – outras paragens, outras mulheres, outras realizações. E agora só você volta para mim, para ver os destroços dessa barca e contemplar, não sei se com tristeza ou alegria, o fim de todos os seus sonhos.
Eu tenho quarenta anos e a doença come meus ossos com avidez, querido. Logo estarei a sete palmos embaixo da terra, acompanhando o caixão do meu marido, e como você irá reagir? Como você irá sobreviver quando todos os laços forem cortados? Espero que não reaja mal. Espero que você me esqueça logo. Eu não quero ser lembrada.
Não há mais nada para matar em mim, querido. Não há mais dragões para assassinar. Não há mais bailes e olhares furtivos, beijos roubados ou torrentes de raiva – não há mais nada aqui, a não ser a minha carcaça. Eu me rendi, finalmente, categoricamente, sem chances de arrependimento. Não há mais nada para tomar de volta, não há mais caminho para seguir. Não siga meu exemplo, não me siga, não deixe que eu vire sua sombra. Tome sua vida de volta, querido, e deixe-me morrer em paz.
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