GATOPARDO
Sérgio Galli

No romance "O gatopardo", do escritor italiano Giuseppe Lampedusa — depois virou um filme magnífico de Luchino Visconti, com Alain Delon e Cláudia Cardinale — em determinado momento, um dos personagens diz: "é preciso mudar para que tudo fique como está". FHC III, quer dizer, Lula, é mais um a confirmar a atualidade da frase. O encanto que já é desencanto. O desencontro entre o poder e a realidade é de uma nitidez escancarada, absurda, e, também, um ensaio sobre a cegueira. O discurso petista mudou para que a política econômica — ditada pelo FMI e pelo Banco Mundial — seja totalmente igual à do tucanato. E, como sempre, escolheram o bode expiatório da vez, ou seja, os aposentados, para justificar o injustificável. Os males do Brazil não são mais apenas a saúva, agora também, os inativos. Para esses tecnocratas, mergulhados em números, estatística, gráficos, o melhor seria que, literalmente, quando um trabalhador se aposentasse, realmente tornasse um inativo, ou seja, teria a opção de receber, gratuitamente, uma cápsula de cianureto, ou, amiúde, a guilhotina, o garrote vil, o fuzilamento, o enforcamento, a empalação, alternativas ao gosto do cliente, do consumidor, com realização de pesquisas de mercado (o novo Deus), medição de audiências através do ibope. Assim, eliminado este problema, viveríamos no melhor dos mundos. 

O cinismo, por parte dessa elite é tão grande que não há mais dissimulação, disfarce, retórica, para tanta desfaçatez. Há anos, seja dom Pedro I, II, velha república, Getúlio, Ademar de Barros, milicos, Maluf, Sarney, ACM, FHC, Lula, Martaxa e tantos outros, a prática é a mesma. Outro exemplo: usineiro não paga imposto, não recolhe icms, etc, aí, chega no governador, no presidente e, todo solícito e arrogante, para não dizer chantagista, pede a anistia da dívida. Claro, prontamente é atendido, com isenção de impostos de anos e anos. Já na cidade grande, o sujeito abre uma loja, uma clínica, sei lá o que mais numa área de zoneamento residencial — há também os que vendem terrenos em ares de manancial — a prefeitura finge que não vê e tudo fica por isso mesmo durante ano. Aí, mais que de repente, na calada na madrugada, a Câmara aprova uma lei que anistia esses invasores e todos, melhor, quase todos, ficam felizes e contentes e a cidade cada vez mais deteriorada. O cínico argumento é que já que ocuparam esses locais é impossível tirar essa gente, então, a solução milagrosa é legalizar o ilegal. Por último, mas não finalmente, a Câmara Federal vai aprovar um projeto de lei que dá anistia aos devedores do INSS. Sim, a empresa recolhe o dinheiro do empregado e simplesmente não repassa para os cofres públicos e ainda, que coisa cândida, dr. Pangloss, recebe o perdão do bondoso governo. A esperança venceu o medo. Um bandido quando faz um assalto é roubo. Dono de empresa quando mete a mão no nosso dinheiro recebe um belo eufemismo: apropriação indébita e ainda é perdoado. Punguista vai para a cadeia. Batedor de carteira de terno e gravata vai passar as férias em Miami. E a patuléia aqui, para variar, é quem paga a conta. A dívida das empresas para com a previdência é de mais de 60 bilhões de reais, mas tem de taxar os inativos. Desencontro? Desencanto! 

Desculpem a longa citação de um trecho de um artigo do filósofo francês Edgar Morin, mas acho de vital importância para o tema em questão: "... Isso deve fazer com que nos desfaçamos, já que de início, do termo desenvolvimento, mesmo emendado ou edulcorado como desenvolvimento durável, sustentável ou humano. A idéia de desenvolvimento sempre comportou uma base tecnoeconômica, mensurável pelos indicadores de crescimento e de renda. Ela supõe de maneira implícita que o desenvolvimento tecnoeconômico é a locomotiva que arrasta atrás de si, naturalmente, um desenvolvimento humano cujo modelo completo e bem-sucedido é aquele dos países renomados e desenvolvidos ou, em outras palavras, ocidentais. Esta visão supõe que o estado atual das sociedades ocidentais constitui o objetivo e a finalidade da história humana. ... O desenvolvimento ignora aquilo que não é calculável nem mensurável, isto é, a vida, o sofrimento, a alegria, o amor. Sua única medida de satisfação está no crescimento (da produção, da produtividade, da renda monetária). Concebido unicamente em termos quantitativos, ele ignora as qualidades: as qualidades da existência, as qualidades da solidariedade, as qualidades do meio, a qualidade da vida, as riquezas humanas não calculáveis e não monetarizáveis; ele ignora a doação, a magnanimidade, a honra, a consciência. Sua abordagem varre os tesouros culturais e os conhecimentos das civilizações arcaicas e tradicionais; o conceito cego e grosseiro de subdesenvolvimento desintegra as artes de vida e sabedorias de culturas milenares.

Sua racionalidade quantificante é irracional quando o Produto Interno Bruto (PIB) contabiliza como positivas todas as atividades geradoras de fluxos monetários, inclusive catástrofes como o naufrágio do Érika ou a tempestade de 1999, e quando desconhece atividades benéficas gratuitas.

O desenvolvimento ignora que o crescimento tecnoeconômico também produz subdesenvolvimento moral e físico: a hiperespecialização generalizada, as compartimentalizações em todos os campos, o hiperindividualismo, o espírito de lucro acarretando a perda das solidariedades. A educação disciplinar do mundo desenvolvido aporta muitos conhecimentos, mas engendra um conhecimento especializado que é incapaz de captar os problemas multidimensionais e determina uma incapacidade intelectual de reconhecer os problemas fundamentais e globais."

O próprio Morin em outras publicações defende a tese que esse modelo de representação política está esgotado. Afinal, a Revolução Francesa tem mais de 200 anos. A democracia, claro, é um valor universal, mas precisa ser aperfeiçoada, aprimorada, afinal, um crime, cometido pelo presidente texano Bush — a invasão do Iraque — acaba de ser cometido em nome da democracia e em nome de Deus. Os partidos políticos, os parlamentos e a estrutura do Estado, incluído os três poderes, perderam contado com a realidade, desencontraram-se da sociedade e do cidadão. Este, foi buscar alternativas, organizações não governamentais, entidades, associações, etc, para defender seus direitos e tentar ser representado, pois os parlamentos representam apenas grupos poderosos, corporações (sindicatos, entidades) e apenas estão lá para defender esses interesses, tudo em nome do povo, óbvio. É preciso, urgentemente, repensar a democracia, criar um novo modelo, pois liberdade é uma falácia (a ditadura do mercado, das bolsas, do dinheiro e da informação), a igualdade, uma miríade e a fraternidade é um logotipo (desce redondo, Mc dia feliz, fome zero, just it...). O PT "mudou" para ter uma prática igual a de seus antecessores, e nisso lá se vão séculos e século. "Mudou" para ser "puder". O medo venceu a esperança. O desencanto venceu o encanto. O desencontro é o livro do desassossego. 

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