CAI O PANO
Luciana Priosta

Sentia a brisa gelada que vinha do mar passar pelos cabelos arrepiando-lhe a nuca. Seus sapatos sofisticados, suas jóias discretas e modernas mal escondiam a ansiedade de uma coração de menina apaixonada. O olhar mergulhado no fundo do copo imaginado-o bola de cristal etílica onde via sonhos multicoloridos traduzidos pelas frutas da batida que bebericava. Como ele havia dito mesmo? “Eu sinto que vamos nos dar muito bem, talvez, bem demais...”. E lhe sapecou um beijo na testa. Aquele gesto inesperado sublinhara suas palavras com um glitter mágico, como se um click a despertasse. “...bem demais”. Adrenalisara-a instantaneamente, pronta para fugir ou atacar! 

Aquela havia sido a primeira deixa. Nada havia chamado sua atenção para aquele menino até então. Depois vieram os cafés com cigarrinho. Nesta onda anti-tabagista, eram os dois únicos fumantes que ainda restavam na empresa. Os gostos em comum, a admiração mútua, as trocas de cds, as conversas sobre trabalho. Almoçaram juntos muitas vezes. Lanches no trailer da esquina. Divertia-se ao ver o efeito que suas roupas caras tinham sobre a molecada que freqüentava o lugar. Quanto ele lhe indicava com um movimento de cabeça algum menino mastigando o X-bagunça com a boca meio aberta e olhos pregados em suas pernas, jogava a cabeça para trás e ria com vontade. E ele ria com ela, cabelos escorridos caindo pela testa. Ele exalava virilidade e força a cada mordida no pão. Comia com gosto, com fome, com gula. Era um grande prazer almoçar com aquele menino.

Não demorou a combinarem os primeiros cinemas. Descobriram que tinham as mesmas preferências também nesta área. Embora muita coisa nova lhe fora apresentada. “Conhece cinema russo? Tem comédias excelentes!”. Não ela não conhecia. Mas oferecidos por aquele sorriso de dentes perfeitos (pra que tantos ferrinhos meu Deus!) só poderia ser o melhor cinema do mundo. Passaram a freqüentar videoclubes e sebos na hora do almoço. O cabelo liso quase loiro, o rosto azulado por barba dura (como seria sentir aquela barba roçando-lhe as coxas...), os gestos vigorosos. A maneira como contava sobre seus acampamentos, e como ficara vermelho quando lhe perguntara se eles haviam passado frio e fome no meio do mato totalmente caretas. “Ah, a gente levou unzinho, né...” e tentou se esconder atrás da fumaça do cigarro. Tudo nele a enlevava. 

E agora, o convite. Estava nervosa feito colegial. “Preciso me encontrar com você longe do trabalho. Tenho uma surpresa...!” E havia dito a frase com muito mais reticências do que me é possível aqui colocar. “Minha banda vai tocar lá em Barra do Sul. Passa por lá e depois do show a gente bate um papo.”

E lá estava ela. Se alguém da empresa sequer sonhasse... Não gostava nem de pensar! Os meninos eram bons! Uma banda de blues de primeira, sim senhor. Gente da sua idade freqüentava o lugar, pessoal bem pra lá dos 30, quase todos com a marquinha branca da aliança na mão esquerda. Já havia sido abordada duas vezes só no caminho da entrada até sua mesa (reservada previamente por seu menino...). Ficava bem perto do bar e de frente para o palco. Vez por outra ele lhe dava um adeusinho de trás do enorme contrabaixo que tocava. Acendia seu primeiro cigarro quando Rogê atraca em sua mesa. 

Rogê é o típico Dom Juan de quermesse: belisca todas mas não prova nenhuma. Ultra-competente. Qualquer projeto em suas mãos vira sucesso. Nem que tenha que pisar em um ou dois pescoços pelo caminho. Não combinava com seu estilo de gestão, mas a alta chefia o adorava e por isso o tolerava em seu departamento. Caso contrário o mandaria para a rua assoviando e tocando violinha. 

- Puxa, não acredito que você veio!

- Oi Rogê. Qual o espanto, este bar é público, sabia?

Alguns segundos de silêncio até Rogê se recompor.

- Poxa, me dá uma chance. – sorri amarelo - A gente pode se conhecer melhor, sem aquela chatice do trabalho...

Não lhe agradava o rumo da conversa, mas...

- Ta, sentaí.

- E aí? Sabe que estou feliz em saber que você veio?

- Sério? Sei.

- Eu sei, mas fui quem disse pro Léo te convidar...

- ?

- No trabalho não dá clima pra falar com você.

- ?

- É que eu...

- ?

- Faz tempo que estou querendo falar com você assim no particular – e notando na carranca dela o temporal armando-se, tenta (mal) disfarçar. Pigarreia, olha pro bico do sapato, olha pro palco...

- - O Léo toca pra caramba né?

- Oh sim, ele é adoráv... - abre um largo sorriso que rapidamente estrangula entre os dentes. 

Silêncio constrangedor. Ele sacou. Escutou o último ai do sorriso que ela tentou matar. Ele era um chato, mas não era bobo.

- Ai meu Deus... – geme baixinho.

- Que foi, dor de barriga?

- È que sou muito burro! Como pude imaginar que eu...

- Tudo bem, que você é burro eu já sabia, não fique constrangido.

- Como pude não ver? Tá na cara!

- O que? - desconfiada

- Você não... Que merda!

- Eu não o que? - alarmada

- Só podia, como eu sou burro! E ainda pedi ajuda dele... Sou um animal!

- Ajuda? Ajuda de quem? - gelada

- Eu não acredito – soca a mesa com violência

- Ei, o que há? – apavorada

- Você gosta DELE! Do Léo! E você é uma burra também! Dois burros, um sentado de frente pro outro! Sabe qual a surpresa que ele tem pra você sua trouxa? Não, né? Pois eu digo sua burra, ele quer lhe apresentar a namoradinha dele! Namoradinha!

- ... – desmaiada.

Rogê se levanta da mesa e vai embora se sentindo muito otário para por em prática seus conhecimentos de primeiros socorros. 

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.