A MENINA E A MULHER
Daisy Melo

"- Em que espelho ficou perdida
a minha face?"
Retrato, Cecília Meireles.

O vento bateu e sacudiu o toldo da varanda. Não que estivesse ventando muito, mas bastava que a brisa soprasse um pouco mais forte para que o toldo produzisse um barulho seco, espaçado. Por causa disso, algumas vezes, no silêncio das suas insônias, a mulher inventava sons de passos caminhando sobre os pedriscos do jardim.

Ela levantou-se lentamente da poltrona. Como lentamente tudo fazia. Como a sua vida, vivida lentamente. Espiou a noite pela fresta da janela, sorriu - apenas um leve mexer com o canto da boca - para o fiapo de lua que caía de um céu onde pipocavam milhares de estrelas. Sentiu um arrepio, cruzou o casaco sobre o peito e fechou a veneziana no exato instante em que, lá fora, um gato miou um lamento solitário.

Deitou no tapete da sala, olhou o teto e reparou que estava escuro. Conseguiu espichar-se um pouco para esquerda, tentando olhar pelo vão da porta do quarto. O relógio digital piscava no criado-mudo: 12:00! 12:00! Acabara-se a luz em algum momento do dia e ela não percebeu.

Pensou na sua vida lenta, seu presente lento, seu futuro provavelmente lento... Recordou-se vagamente que, em algum tempo no passado, uma criança corria. E brincava... Quem era essa menina? Em que ponto do caminho a perdera? 

Olhou novamente para o teto e adivinhou uma mancha marrom que subia pela parede. Precisava mandar consertar o encanamento. Levantou-se, cruzou as pernas, tateou a mesinha de centro a procura dos cigarros... acendeu e aspirou a fumaça espiralada. Doce cigarro... tão companheiro...

Voltou a pensar na menina de cabelos anelados, olhos míopes que se fechavam quando sorria. As pernas muito finas corriam para agarrar a bola do queimado, brincavam de pique pelo pátio do colégio, escondiam-se atrás do muro da quadra de voleibol. A roupa sempre amassada, a ponta da camisa saindo desavergonhada pelo cós da saia, fazia com que levasse reprimendas das irmãs de caridade: não era uma menina comportada, não estava sempre limpinha e arrumada, não mantinha os cabelos penteados. A penitência, rezar toda noite dois padre-nossos extras, era para que Deus perdoasse tamanha insolência. 

Sorriu com calma, devagar, como devagar eram todos os seus sorrisos. Em que desvio do percurso, seu caminho ficou comprido demais, grande demais, tortuoso demais para aquela menina? Aonde o desencontro?

Sentou no tapete enlaçando os joelhos e mexendo os dedos dos pés como se dançassem. Lá fora um vento miúdo carregava folhas e gravetos. Alguém passou de bicicleta, um cachorro latiu, seguido por vários outros em coro. Um coral de cães, riu a mulher, achando a idéia um pouco engraçada, como pouco engraçadas eram todas as suas idéias.

Um pingo pinga-pingava acompanhando o passar morno do tempo. O telefone subitamente tocou. Seu coração saltou assustado - Quem seria? Não esperava nenhuma ligação. Ninguém ligava. Imaginou que talvez fosse a menina. Finalmente a teriam encontrado. Segurou o fone trêmula, apreensiva. "O que dizer para ela, meu Deus?" Do outro lado, uma voz estridente, ansiosa, falava de relatório de vendas, do bilhete com as instruções deixado em cima da mesa, das chaves do almoxarifado - era seu chefe. A mulher fez um muxoxo e pousou suavemente, como suaves eram todos os seus movimentos, o fone na mesinha e voltou a deitar-se no tapete. A voz do outro lado do fio não parava de falar.

Voltou a pensar na sua menina. Sentiu uma vontade imensa de resgatá-la. Como esquecera-se de cuidar dela? Como estaria hoje? Teria crescido? Examinou suas próprias pernas, ainda fortes. Pernas que ainda podiam correr e suspirou profundamente, um suspiro arrastado, como arrastados e profundos eram todos os seus suspiros, e, decidiu voltar. Percorrer o caminho inverso, andar para trás em busca de sua menina, descobrir onde a havia esquecido. Exatamente em que local houve o desencontro dela com a menina que ela era?

Percebeu pelas frestas embaixo da porta, que já estava amanhecendo. Um lusco-fusco ainda, mas não tardaria a aparecer o sol. A mulher não se mexeu. Visualizava um parque de diversões. As vozes, a música, um som rouco de vinil arranhado no alto falante "de Augusto Flávio para sua amada Mariléa", e a roda gigante... ah, a roda gigante... as luzes coloridas... E teve a certeza: foi lá, na roda gigante, no fascínio das luzes, que ela desencontrou-se da menina. Um arrepio passou pelas suas costas. Um misto de medo, ansiedade, alegria. Segurou dentro do peito seu pequeno sonho (como pequenos haviam sido todos os seus sonhos antes deste) e resolveu tomar um copo d' água; estava com a boca seca. Longe, um galo cantou sua homenagem ao dia, despedindo-se da madrugada. As primeiras buzinas tocavam, ouviam-se passos na rua. A mulher não escutou. Surgiam descompassados na sua cabeça, fragmentos de música, "meu calhambeque bi-bi...", rodando no vinil desgastado. 

Lembrou-se que precisava arrumar-se. Não podia encontrar-se com a menina como estava, com roupa de andar em casa. Rapidamente - de repente tinha pressa -, a mulher vestiu seu melhor vestido, penteou os cabelos, colocou perfume. Olhando-se no espelho do guarda-roupa, compreendeu que era outra. Já não era magra, nem míope. Teve medo da menina não a reconhecer. Entendeu então, porque a havia deixado para trás: a mulher não permitiu que a menina crescesse. Havia abandonado-a lá, sozinha, porque não tinha mais tempo para ela. Ela sim, a mulher, crescera e precisava então, fazer coisas importantes. Só que nunca as fazia, porque as coisas importantes nunca vinham. "Amanhã as coisas importantes chegarão". Mas o amanhã era muito lento, como todos os seus amanhãs antes deste, e demorava a chegar. 

Tudo o que tinha a fazer era ir buscá-la. Observá-la, acolhê-la. Contar que a vida era dura, sim, complicada demais, mas que vale a pena. Que ela, a menina, precisa crescer enfim. E explicar tudo com um grande sorriso - agora tudo era novamente grande -. deixar chegar o amanhã... iria ensinar a menina a ser feliz. 

Sua menina estava lá, sentada, olhando as luzes da roda gigante. E não parecia perdida. Estava lá, esperando simplesmente. A mulher chegou de mansinho, apreensiva, com medo de não ser aceita, mas a menina segurou a sua mão. E de repente tudo ficou colorido. A roda gigante rodopiava deixando-a entontecida com as suas luzes, a música animava as pessoas que riam e comiam algodão doce. A menina e a mulher caminharam e logo em seguida correram satisfeitas.

O sol chegou totalmente, iluminando o dia, a rua e a casa da mulher. Ela abriu a janela. O céu, agora de um azul arroxeado, brilhou, doendo nos seus olhos apertados de luz. Respirou fundo, deu bom dia para vizinha que estendia roupas no varal, sorriu para o gato que caminhava cauteloso sobre o muro, acertou o relógio digital e foi dormir em paz. 

Para Ruth Cohen

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