O
FILHO DA SEREIA
Mairy Sarmanho
Meu mundo tem cheiro de mar: aqui tudo está coberto pela areia, inclusive os alimentos na cozinha. O menino brinca no pátio, com um catavento de plástico, enquanto separo um peixe para o almoço. Peixe. De tanto comermos peixes, nossa respiração assemelha-se à deles, nossos corpos são finos como os deles, nosso cheiro é igual. Roberto foi pescar e levou o filho mais velho junto. Quer que aprenda a profissão e seja dependente do mar, como ele. Eu não quero: gostaria que cursasse a escola, fosse alguma coisa além de pescador. Entretanto, o menino pensa como o pai: quer viver no mar, não gosta de estudos, escritas, esse tipo de coisa. Sei que poucos bens irá conquistar na vida. Sinto pena dele. E de nós.
O corpo de animal sobre a mesa. Com a faca, esfolo seu cadáver frio. Abro-o num golpe certeiro. Arranco suas entranhas e lavo tudo com água do mar. Um calafrio percorre minha espinha. Pela primeira vez em toda minha vida, me compadeço de seu destino. Gostaria de me alimentar com verduras, talvez. Nada que se mova. Nada que se compare a mim.
Uma chuva fina começa a fazer barulho no telhado de zinco. O menino larga a brincadeira e corre para dentro, gritando: "Tá chovendo, mãezinha!" Olho para fora e associo os pingos d´água às lágrimas das sereias que lamentam por seu filho. Peixe. Tenho vontade de correr em direção ao mar e devolver o corpo. Fantasia. Começo a rir de mim mesma. O menino pergunta o que foi. Respondo que não foi nada. Absolutamente nada.
O tempo passa.
Meio-dia.
Uma hora.
Duas horas.
Cedo à fome e engulo um pedaço do peixe ao lado de meu menino. Em silêncio. Ele parece saber de minha preocupação. Mas se cala, como eu. Somos iguais. Esse vai estudar, ter uma profissão diferente. O gosto de mar na boca me provoca náuseas. Tomara que não esteja grávida: mal temos o suficiente para sustentar os dois filhos.
Quando chega o verão costumo trabalhar como faxineira nas casas dos veranistas. Ricos. Eles têm tudo o que sonho e até o que nem precisam: têm carro, móveis bonitos, roupas o suficiente para me dar algumas, duas casas. Uma para onze meses. A outra para um mês, apenas. Não os invejo. Mas gostaria de mudar meu destino. O que ganho nos dois meses de verão sustenta minha família durante o ano inteiro, apesar de meu marido não admitir isso. A pesca não dá lucro. Nem esperança.
Três horas.
Desisto de esperar e, arrastando o menino junto, bato na casa de um vizinho. O alarme está dado. Meu coração dispara. Penso no choro da sereia ao saber que nunca mais vai ver o peixe-filho que devorei. Cruel. Tomara que...
O tempo passa e a noite cai. O dia vem. A noite retorna. Novamente dia. Eternamente noite.
Fico ali, no mesmo lugar, sem coragem de sair. Por cinco meses. Um dia, quando o vento chegou, trouxe consigo meu marido vivo. O corpo de meu marido. Infeliz, não teve coragem de retornar sem o filho. Ficou por aí, insano, desesperado, pescando esperanças no mar aberto.
Meu coração é pedra. Minha barriga cresceu. Meu filho retornou ao ventre, tenho certeza. Mas, dessa vez, não vai conhecer o mar. Convenço meu marido louco a partir conosco. Deixo para trás tudo o que tenho. Exceto a dor. A raiva. E choro secreto da sereia que lamenta nunca encontrar o filho morto...
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