SONHO DE VALSA
Luís Valise

 
 
Conferiu as horas jurando que seria a última vez. No escuro do quarto, os ponteiros luminosos marcavam 20 minutos para as 2 horas da madrugada. Seu coração batia tão forte que tinha medo de não ouvir a chave girando na fechadura antiga. A construção centenária tinha o teto bem alto, e o velho assoalho cedia aos passos com gemidos moribundos. Ela ouviria quando ele chegasse. Otávio vinha caindo na farra com mais freqüência, e Dalila achou que chegara a hora de dar um basta. 

As lembranças recuaram até o início do casamento, quando ele se encontrava com os amigos todas as segundas após o trabalho. Ela conhecia os velhos companheiros de infância de Otávio, e não via mal nenhum naquelas reuniões saudosistas, onde no máximo, depois de algumas cervejas, punham-se a contar vantagens sobre antigas namoradas. Ao chegar em casa, com a alegria meio safada que o álcool lhe emprestava, Otávio sussurrava em seus ouvidos algumas inconfidências marotas, encoxava sua bunda com ternura, e dizia que ela era a melhor de todas, que sempre seria a melhor de todas. Dalila olhava seus olhos vivos como cataventos, e, às segundas, Dalila deixava tudo.

Força de vontade ela sempre teve, suas decisões sempre foram firmes, por isso ela não voltou a conferir as horas. Só quando não agüentou mais: três e vinte e cinco. Ela disse baixinho “Chega”, e na mesma hora algumas lágrimas escorreram para o lençol outrora úmido de corpos suados. A luz da rua entrava pelas frestas da veneziana, e seu corpo imóvel sobre a cama parecia cortado em postas. Se ao menos ele tivesse outra. Se ele, como tantos, desse suas escapadas durante o dia ela até poderia fingir não saber, afinal a família, os filhos, o Otávio, o Otávio! Mas não.

Otávio sempre foi da gandaia, aquilo que antigamente era chamado de boêmia. Inferninhos enfumaçados, onde os homens eram sinceramente fregueses, e as mulheres honestamente putas. Sociedade sem classes. Comunhão de infelicidades que vêm do berço. Depois de casado conseguiu segurar as pontas por alguns anos, Dalila orgulhosa por ter domado o domador. Aí, as noites de segunda foram ficando mais longas, e logo, não apenas às segundas, Otávio foi cedendo aos chamados silenciosos das almas irmãs. Nem era pelas mulheres, devia ser um atavismo de catacumbas, mas para Dalila era tudo igual, farra pura e simples. Não discutiam mais. Otávio chegava vencido, cabeça baixa, tirava a roupa cor de nicotina, e se deitava ao lado dela em silêncio. Só então Dalila deixava de fingir e dormia de verdade. 

Acendeu a luz. Aos poucos os olhos foram-se acostumando às manchas do teto. Pra quem reclamar da pintura, agora? Levantou-se com cuidado para não fazer barulho. Pegou a mala que ficava em cima do guarda-roupa, abriu a gaveta das roupas de baixo dele e começou a arrumá-las dentro da mala, lentamente. Depois foi a vez da gaveta das camisas. Cheirou demoradamente a primeira antes de deitá-la na mala. E então uma chave girou na fechadura. Seu coração descompassado esperou pelos queixumes do assoalho, que ecoaram na direção do quarto. Quando ele abriu a porta ela estava parada ao lado da cama, de camisola, olhos vermelhos, uma camisa dobrada nas mãos. Sobre a cama a mala aberta, peças de roupa cuidadosamente arrumadas dentro. Otávio tinha os olhos tristes. Ficou parado, olhando a mulher, tentando compreender o que acontecia. Dalila poupou-lhe trabalho:

- Vamos passar o fim de semana na praia?
 
 

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