O ÍNDIO (CATA-VENTO)
Iosif Landau
A manhã despontou, o sol subiu célere um salto acima do horizonte, a terra cobriu-se de ouro e calor, vento leve ergueu-se, ar com gosto de poeira veio refrescar as mãos no volante do homem suado e cansado, a estrada solitária seguia no além...
... ao meio dia o vento cessou, o dia explodiu como melancia madura, suco morno e sufocante escorreu pelas costas dele, deu-se conta do tédio, do cansaço, a terra quente esmagada pelo sol exalou sopro abafado, impregnou ele com o odor do seu próprio suor misturado com o cheiro dos gases do escape da caminhonete, deu-se conta de repente do cansaço, de que estava a caminho do nada, fugindo do tudo, lembranças lentas subiram dentro dele, uma pedra pela garganta, respiração acelerada, sorriso crispado, vômito, despejou o fétido pela janela, acendeu um cigarro, engasgou-se com a fumaça, o fôlego enfraqueceu, aspirou golfada de ar, peito roncou, barriga da perna tesa, mãos insensíveis, olhos abertos como para a morte... nada, nenhum amor, um deserto infinito de solidão, sua última cartada?... parou o carro na porta do boteco, zunido aborrecido o perturbou, com olhos semi–cerrados tentou ver, saber, em cima do telhado cata–vento girava, revolvia, ora num sentido, ora noutro, sem intervalos, sensação do irreal o acometeu, seria ela, meu Deus ela, ar pesado nos ombros, nenhuma brisa, nada se movia, apenas aquele zunido, cata–vento a girar, a girar, estremeceu, entrou...
–... café, água...
... sombras indicavam presenças, imobilizadas, o olharam, o homem de trás do balcão colocou copo com café fumegante e garrafa de água à sua frente, o viajante cuspiu saliva seca no chão de terra.
– vem donde?
– Mombaça! e aqui é?
– Carira – respondeu uma sombra – vai pra donde?
– Poço Verde! – falou o homem sentado numa mesinha.
O recém chegado o fitou:
– como sabe?
– a estrada acaba lá, depois só o rio... mais uma! – bateu com o copo na mesa, ninguém se moveu:
– quem é você?
O viajante virou-se , ondas de sangue subiram-lhe nas temporas.
– sei quem é – continuou o homem da mesinha – é um deles, chupa-sangue.
Diante do olhar sombrio do outro ele viu o ambiente de repente com cores brilhantes, o cenário deprimente clareado.
– não liga pra ele, moço – falou um dos presentes – dz isso pra todos os de fora...
–... o caboclo me deu guarida – a voz monocórdia devolveu o mal estar ao viajante – o cachorro dele era louco, tinha que ser morto...
– ... não quis atirar pra não gastar chumbo – falou uma das sombras – aí...
– ... amarrou dinamite no pescoço do bicho – continuou a voz monótona – esticou o pavio...
–...o bicho quase desfalecido , como podia saber? acendeu o pavio, o danado do cão reanimou e correu de volta pra casa, que nem vento... o casebre explodiu, morreu o bicho, a mulher, o caboclo endoidou, correu aos berros, a alma penada dele vagueia por ai...
O viajante estremeceu.
–... o índio – falou o homem de trás do balcão – diz que chama ele, diz que é a alma do bicho, da mulher, do caboclo, tudo junto, lá da beira do precipício, manda ele se jogar de lá, mas aqui é tudo liso que nem mesa de bilhar.
Em algum lugar uma porta bateu, o eco lúgubre aumentou mais ainda o silêncio.
– fantástico demais, coisa de ...
–... chupa–sangue?
– vampiro!
– sim – falou o da mesa – conheço a historia dele...
–...e quem não conhece? ele...
–...o recém-nascido e ela pela catinga afora, o peito dela murcho e seco, pegou a peixeira e se cortou, bem ali na veia, a criança sugou o sangue, foram encontrados, ela morta, ele vivo...agora tá crescido e anda por aqui...o moço é ele?
O viajante encostou-se no balcão, respirou tudo que o mundo lhe oferecia de estranho e solitário naquele momento, a solidão na pobreza desse local, terrível miséria...
– não pode ficar aqui – escutou.
– eu a amava – falou o viajante com esforço – Marta...
...a conhecera há alguns meses, atraído pela sua beleza e elegância , rosto de menina num corpo alto e cheio, lábios pintados a faziam parecer com uma deusa desenhada, mas com um ar longínquo e impassível, ele vislumbrara o futuro através dela, toda a força do seu desejo se fixara nela , sentira isso como um milagre, tornara-se amante dela no mesmo
dia... com os braços ao longo do corpo, uma das pernas semi–dobrada, deus solitário atirado em um mundo estranho, ele a
desejava... não gosto que me olhem quando estou dormindo... querida, que mania
sua!... não me chame de querida... de costas para ele, conhecia esse hábito dela, agora isso o irritava, colado à ela, apalpava o ventre, os seios, ouviu ao longe choro de criança, miados, os postes da rua iluminando o quarto, de quando em quando carro passando, cheiro de feijão cozinhando vindo da rua, baforadas
pesadas... desde ontem você está estranha... sacudiu os ombros dela, ela ainda imóvel, a escuridão de repente
espessa... aquele sujeito de ontem, foi teu amante?... sim e não, não de todo...
ele não disse mais nada, lembrou-se dos gestos, das palavras, dos sorrisos, cerrou os
dentes... quantos amantes?... não aborrece, uns dez... conheço eles?...
alguns... vontade louca de acender um cigarro, acariciar a bunda dela, não ousou, esfregou a testa no ombro
dela... escute, minha amada, promete me dizer o nome deles, dos outros que não conheço também, se os encontrarmos vai mostrá-los...
ela atirou-se pra frente... essa não!... um carro buzinou, uma vez, duas vezes, a luz do relógio digital piscava, sentiu o frio...
se eu não souber cada cara que encontrar vou me perguntar, vou imaginar... nomes, o último era alguém que conhecia, conquistador inveterado, a sordidez do amor fácil, induzido, ela e aquele filho da puta, sentiu um nó na garganta, algo no estômago o
corroia, a penetrou com violência... é assim que ele fazia?... ah!... cale a boca!... mãos poderosas apertaram a garganta alva e alongada...
– quer um quarto? – falou uma das sombras.
Sentado na cama turca, o viajante desabotoou a camisa, afrouxou o cinto, olhou-se no caco de espelho à frente, rosto de traços abatidos, escurecido, barba de três dias, cabelos despenteados e grudentos, poeira e suor, duas rugas profundas entre as sobrancelhas, olhou em volta, tabique sujo e repugnante, geografia de imundície, universo de miséria, inspecionou os lençóis amarronzados, viu um fio lustroso de sujeira caindo do teto, detritos de mosca colados nele, uma lâmpada pendia ali.
O viajante deitou-se, adormeceu.
Despertou suando, amarrotado, acendeu um cigarro, cabeça oca, olhou às calças sem vinco, na boca mistura do amargor do sono e do cigarro, coçou-se debaixo da camisa, suavidade terrível diante de tamanha solidão e abandono, longe de tudo, diante dele surgiu a imagem secreta e vergonhosa da liberdade nascida da morte, da fuga, à sua volta lama, minutos monótonos...
Bateram na porta com violência.
– vem! ele nos espera !
Zunido do cata–vento ensurdecedor.
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