ONDE
A MÃE PRETENDIA PLANTAR JASMINS
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
O vento é o ar em movimento - aprendera na aula de ciências. Mas aquela tarde movimento era o que não havia: nem de ar, nem de gente, nem de bicho e nem de planta. A rua estava vazia, as folhas das arvores imóveis, os pássaros e os cães da vizinhança emudecidos.
Era porque os meninos da rua estavam todos de quarentena com conjuntivite braba. Era porque as aulas tinham sido suspensas e as brincadeiras em grupo expressamente proibidas.
Hector acordara com os olhos cheios de ramela. Afastara as cortinas do quarto e vira tudo embaçado. Não era a vidraça, eram seus olhos. Fazia sol forte lá fora e ele pensou o quanto seria bom se pudesse sair para brincar.
Logo em seguida a mãe veio com um pano úmido e fez uma limpeza cuidadosa nos seus olhos. E uma advertência:
"Não vá ficar esfregando os olhos, Hec. Se não vai ficar pior do que já está"
E ele piscando e piscando e pensando de que valia não ter aula se não podia aproveitar.
Depois do almoço voltou à janela para ver se alguém da turma tinha tido melhor sorte.
Ninguém. O toque de recolher das mães era implacável.
Do outro lado da rua, na janela do sobrado amarelo, ele viu o Tiago. Haviam três Tiagos na rua e mais uns quinze na escola. Nome de apóstolo estava na moda. Havia também doze Lucas, quatro Andrés, um Marcos, um Pedro e um João. Mas não havia nenhum Judas; que as pessoas, como dizia a avó, não perdoam traição.
O Tiago do sobrado amarelo era fera em empinar pipa; mas não era tão bom de bola quanto ele. Hector acenou para ele mas não obteve resposta. "Vai ver ele está sem os óculos", supôs.
Hector vasculhou a bagunça das gavetas do seu armário e no meio daquelas tranqueiras todas apanhou um espelhinho de bolso que ganhara-o do avô e correu de volta à janela. Dali enviou, direto no rosto do amigo, a primeira mensagem. Era assim que se comunicavam desde que tentando enviar sinais de fumaça á moda dos peles-vermelhas, quase haviam causado uma tragédia. Naquele dia o fogo fugira-lhes ao controle e alcançara algumas roupas estendidas no varal da casa de Hector Felizmente os adultos perceberam e apagaram as chamas rapidinho. Infelizmente eles não escaparam de uma boas de uma surra de cinto.
Do outro lado, Tiago respondeu com seu espelho transmissor. Trocaram informações. Tiago estava com uma pipa novinha em formado de gaivota e pretendia empiná-la. Mostrou-a da janela. E assim o fez: desceu-a devagar junto à parede e esperou uma corrente de ar que não veio.
O ar continuava imóvel e deixou-o desanimado.
Hector disse-lhe em código que não adiantava. Que dali, da sua casa, via a biruta desbotada do campo de avião murcha como um pano de coar café. Nada de vento a bombordo, companheiro.
Combinaram então que logo que visse a biruta inflar, Hector daria o sinal para que Tiago não fosse pego de surpresa e ter a pipa enroscada nos fios da energia.
Enquanto aguardava o vento que não vinha, Hector teve uma idéia: recortou um retângulo de cartolina azul em forma de cruz de malta, juntou as pontas direitas no centro e firmou-as com um alfinete num palito de madeira que viera com comida chinesa. Tava pronto o cata-vento.
Da janela mostrou-o ao amigo.
"Assim posso detectar qualquer brisa, por menor que seja"
E esperaram.
Quando estavam quase desistindo, o cata-vento deu uma volta.
"Você soprou, não soprou?", perguntou Tiago.
O outro negou mas não o convenceu.
Havia um código de ética entre a turma que precisava ser respeitado. Caso contrário era declarada a guerra. Como principal conseqüência podiam ficar de mal por muito tempo como já acontecera de outras vezes.
Ficaram irritados um com o outro. Um por que achava que o outro trapaceava; outro porque achava que o um não confiava nele. E ataques de raios de sol fulminantes cruzaram a rua. Aquela altura já haviam apelado para espelhos maiores. Hector trouxe um quarenta por quarenta com moldura floreada do quarto dos pais. Tiago, respondeu ao fogo com um espelhão comprido rachado no canto que a tia usava para se empetecar.
No momento mais acirrado da batalha, uma trégua providencial. Não uma trégua acordada por ambos os lados mas imposta pacificamente por uma nuvenzinha branca de algodão que ocultou o sol deixando-os sem munição.
Finalmente alguém passou pela rua: Era dona Ester, a carola, de sombrinha roxa e véu na cabeça grisalha. Decerto ia para a igreja rezar - onde mais poderia ir àquela hora? O mormaço da tarde assemelhava-se ao inferno que ela tanto temia, por isso refrescava-se com o leque de palha fina trançada com detalhes campestres.
Não se sabe ao certo se foi o simples deslocamento gerado pelo abanar do leque de dona Ester que pôs finalmente o ar em movimento.
O que se sabe é que aquele sopro só foi percebido quando pôs em movimento as pás do cata-vento de Hector que, fincado num vazo sem flores, assistia imparcial à batalha em curso.
Era um girar lento, porém continuo.
Não fosse a membrana importuna da conjuntivite, perceberia-se o brilho que se apoderou dos olhos dos meninos que já não eram inimigos ferrenhos: Tiago não duvidava de Hector. E Hector se sentia reabilitado pelo vento redentor.
Um pôs sua pipa nova alto no céu e ela saracoteou ao vento. O mesmo vento que manteve girando o cata-vento azul fincado no vaso de cerâmica vermelha onde a mãe do outro pretendia plantar jasmins.
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