QUATRO CARLOS
Carlos C. Alberts

“Não acredito que você trouxe mesmo isso para dentro de casa”

“Mas pai, é só um brinquedo”.

“Brinquedo? Um cata-vento, vermelho, com os quatro Carlos? Um brinquedo? Tem certeza?

“Pai, eu sou o Secretário Executivo do Partido, de toda a Região Norte de Piratininga...”

“São Paulo”

“Como?”

"Não é Piratininga. O nome da cidade é São Paulo.”

“Fala baixo, pai. O Almeida, nosso vizinho, conhece o Secretário Geral do Estado Bandeirante e...” 

“Estado de São Paulo”

“Deixa disso, pai. Fazem quase trinta anos que mudaram os nomes. Aliás, amanhã fazem exatamente trinta anos que tudo começou. Dois de Abril de 1964. Dia da Revolução. Nascimento da UESB, a gloriosa União dos Estados Soviéticos do Brasil. Pense nos que morreram lutando contra o golpe militar fascista. Ou você queria uma Ditadura Militar?”

“Você sabe que eu nunca apoiaria um golpe militar. Mas ditadura? O que você acha que é isso?”

“Vivemos numa democracia. Do melhor tipo. Uma democracia do povo.”

“Ra, ra. Democracia. Então o que é isto? Um cata-vento com os rostos de Carlos Marighela, Carlos Lamarca, Carlos Prestes e Karl Marx (que vocês insistem em chamar de Carlos) em cada ponta. Isto é coisa pra criança?”

“Mas, pai, é só para o desfile de amanhã. Eu preciso mostrar que minha família também apóia a União. E o Carlinhos vai adorar.”

“Carlos, meu filho, o Carlinhos ia adorar um uniforme do Santos...”

“Dínamo de Prestes”

“Como?”

“Você sabe, depois que cidade mudou de nome, de Santos para Cidade Prestes, o time se chama Dínamo de Prestes.”

“Eu sei. E isto é o cumulo. Meu neto não vai usar cata-vento político nenhum. Escreva o que estou dizendo. Faço o que for necessário para que ele não entre nessa lavagem cerebral. Eu vou indo. Tchau.”

“Tchau, pai”

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“Sim?”

“Companheiro Secretário Executivo Carlos?”

“Sim?”

“Que coincidência. Eu sou o Tenente Carlos. Da Policia do Povo. Posso subir?”

“Claro, companheiro. A porta está destravada.”

“Quem são estes outros policiais, companheiro?”

“Err... Sinto informá-lo, companheiro Carlos. O senhor está preso. Por atividades subversivas.”

“Como assim? O companheiro sabe com quem está falando? Eu sou o Secretário Executivo de toda a zona Norte de São Pau... digo, Piratininga. Ei, onde vai o outro policial? Vocês não podem invadir assim...”

“Companheiro Carlos, o que é isto?”

“Apenas uma camisa”

“Apenas uma camisa? E este brasão do Santos? O senhor sabe que não pode manter nenhum objeto com nomes religiosos. São as expressões filosóficas do Capitalismo fascista.”

“Companheiro Tenente Carlos, para que time o senhor torce?”

“Para o Locomotiva do Caxingui, por que?”

“Ah, o São Paulo. E o senhor não tem nenhuma camisa antiga do seu time. Só por motivo de coleção?”

“Naturalmente que não. E o que importa aqui é o senhor. Vamos indo?”

“Está bem. Mas, por favor, diga-me. Quem me denunciou. Foi o Almeida?”

“Almeida? Não. Foi o seu pai, o companheiro Carlos.”

---*---*---*---

“Carlos, tudo bem?”

“Como pode estar tudo bem, pai? Eu vou ser mandado para Serra Pelada. Pra trabalhar como formiga, na mineração do ouro. Por que você fez isso?”

“Pra salvar o Carlinhos.”

“Não acredito que você fez isso por motivos ideológicos. Eu sempre lhe protegi. Você poderia ter sido preso tantas vezes. Usei minha influência, e devia favores, só pra lhe tirar das confusões em que se metia. Como pôde fazer isso?”

“Eu sei, filho. Dói muito. Mas dói muito mais em mim. Não estou salvando apenas o Carlinhos. Estou salvando você.”

“Pai, eu posso morrer. Aliás, acho que quero morrer.”

“Agora escute bem, meu filho. O muro de Berlim caiu há quase quatro anos. A União Soviética esta se desfazendo. O resto da Europa Oriental segue o mesmo caminho. O Texas voltou a ser capitalista. Só faltam o Brasil e Cuba. Quando isto acontecer, como você vai querer ser reconhecido? Como o comunista que colaborou com um regime brutal, ou como o herói que ousou manter a camisa do seu time de coração? Assim, trate de ficar vivo. Mas mesmo se morrer, o que vão lembrar de você vai ser bom. E eu prometo não contar sua ligação com o Partido para meu neto.”

“Está bem, pai. Olhe por ele. Dê aqui uma abraço”

“Companheiros Carlos: sem contato físico. Os senhores conhecem as regras”

“Tudo bem, tudo bem, companheiro tenente Carlos. Aliás, parece que o Dínamo goleou o Locomotiva. Gostou?”

“Vamos voltando para a cela, companheiro, o senhor já está me irritando. E aquele foi só o primeiro jogo da final. No próximo, o São Paulo acaba com a festa dos peixeiros.”

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