CORAÇÃO
RESISTENTE
Bárbara Helena
Girando.. girando.. no vento
Ficava assim, braços levantados, mãos espalmadas, a força dele desarrumando o cabelo fino.
Magrinha, quase um galho de árvore, os grandes tinham medo de que fosse carregada pelo temporal. Mas ela gostava de sentir a chuva caindo, enquanto rodava, no alto do morro, os cabelos voando.
Bastava a chuva vir se anunciando ao longe, no contraforte das montanhas azuis, para ela sumir de casa. Estava sempre lá, aguardando a força do vento para girar, girar, até ficar cansada, até a tontura boa se apoderar dela e derrubar seu frágil corpo de menina na terra molhada.
"Menina aluada, nasceu em noite de eclipse, ficou assim, sem juízo.."
As comadres se benziam quando ela passava, cabelos negros desalinhados, expressão distante. Não brincava com os
outros meninos, não se agradava de boneca, nem pipa ou pião.
Sua única alegria era encontrar o vento.
Castigos e prêmios, nada adiantou. Aos primeiros pingos, lá estava ela, um humano cata-vento a rodopiar no meio da tormenta.
Prendê-la em casa nos dias de chuva só aumentou o desejo de liberdade, consumiu-se numa febre maligna que nenhum chá ou mezinha conseguiu curar. O doutor, que veio da capital passar as férias na cidade, chamado às pressas, diagnosticou:
"é febre nervosa, a menina não tem nada, só tristeza."
"É quebranto" - concluiu a vizinha parteira, doutora em ervas, sabedora de coisas do coração, corpo e pele. Deixa a garota livre, mal não faz, se encontrar com a tormenta, é coisa dela, de escolha antiga.
"Coisa de filha do eclipse" – sussurravam os vizinhos.
Mas acabaram se acostumando. Já nem sacudiam a cabeça quando a viam passar, correndo, em direção ao cume. Ao contrário, guiavam sua projeção do tempo pela inevitável caminhada dela
"pode tirar a roupa do varal, que a filha do vento passou pra cima, vem chuva na
certa"
E ela, indiferente a tudo, girando, girando, cada vez mais forte, cada vez mais rápido, um pequeno e leve pião de carne, os cabelos dançando ao seu redor.
Quando os homens chegaram, causaram uma certa impressão na cidade.
Mal-encarados forasteiros, a ninguém cumprimentavam, quando, por acaso, saltavam dos carros velozes. Estavam sempre subindo na direção do cume dos ventos, mas não era a eles que procuravam e sim a coisas misteriosas, que escondiam nas grutas da região. O povo falou um pouco, depois deixou pra lá. Desconfianças foram escondidas pela cortina do medo ao desconhecido. Continuaram suas vidas pacatas e deixaram ao mal o que era do mal.
Quando a tormenta rugiu pela primeira vez naquele inverno, a filha do eclipse correu, como sempre, para sua colina, mas foi interceptada por mão grosseira –
"aqui ninguém passa". Ela lutou, tentou se esquivar e foi jogada, rudemente, no chão enlameado.
"Passa fora garota, pro seu próprio bem... chispa daqui, já!...". Fitou aqueles olhos frios, deu meia-volta e voltou ventando morro abaixo, as lágrimas salgando os olhos, roupa molhada, boca seca e quente de saliva.
A noite, os homens mal-encarados, reunidos em volta da fogueira, na entrada da gruta, viram, por alguns momentos, entre o brilho pesado da chuva, um estranho pião humano girando, girando, no alto do morro.
"Pestinha! Eu avisei"
Ajustou a mira e atirou. O vento deu um suspiro.
O frágil cata-vento cambaleou, quase caiu, mas se reaprumou e continuou a girar, agora mais lento, levantando alguns brilhos na chuva.
Atirou outra vez, mais outra, numa raiva insensata contra a pequena filha do vento.
Ela girava, caía para um lado, para o outro, um pião perdendo a força... mas continuava a girar, o sangue se espalhando em volta dela como uma chuva de paetês, bonito, bonito, e girando, e girando, e o temporal empurrando seu corpo leve, sem parar, sem parar...
O outro atirou, atirou e atirou.
E a cada vez, o pequeno cata-vento ferido cambaleava, ameaçava cair, depois voltava a girar, girar, girar, alegre como uma risada de menina, como o gosto da infância perdida, até que as balas acabaram, até que ele, vencido pelo cansaço, os olhos quase fechando de sono, caiu sobre as preciosas mochilas.
E a última coisa que viu foi o frágil giroscópio, rodando no vento.
Inútil e absurdo como um coração.
Sem parar, sem parar de bater.
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