UMA HISTÓRIA DE ESPERANÇA
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Uma chuva de vento aterrorizava a cidade na noite em que ela nasceu. Por isso deveria se chamar Ventania, mas cismaram com Esperança. O vento era tão forte que quase levou o bebê recém-nascido embora. Estraçalhou os vidros da maternidade, colocou em pânico médicos e enfermeiras, enquanto a mãe segurava-se firmemente nas alças de ferro da cama de parto. A filha, logo que saiu do ventre da mãe, foi abraçada pelo vento e içou no ar, a caminho do céu. Atônitos, os médicos seguravam a menina pelo cordão umbilical, que já quase se rompia, quando um silêncio e uma calmaria tomaram conta do local. Aliviadas e como se nada tivesse acontecido, as pessoas continuaram suas vidas e não se falou mais nisso. 

A mãe era a única dona do segredo. Antes da filha nascer, parou-a uma vidente na rua e anunciou o destino trágico do futuro rebento: "ela é filha do vento e ele vai levá-la embora assim que nascer". Se estivesse em estado normal, a mãe jamais teria acreditado em tal história de vento, mas levava um filho na barriga, encontrava-se sensível e crédula demais, como todas as mulheres prenhas daquele mundo. Perguntou aflita à vidente se teria um jeito de salvar a filha das garras invisíveis do vento, e a vidente disse que a solução seria capturar o vento num pote de vidro todas as vezes em que ele se manifestasse. "Guardar o vento num pote de vidro"?, questionou-se a mulher, intrigada. "Isso mesmo, e guarde-os bem. E nunca deixe que sua filha os veja". 

O episódio ficou guardado na cabeça da mãe, que, por precaução, levou um pote de vidro grosso e largo para o parto. Escondeu-o entre os panos do hospital e rezou para que não precisasse usa-lo. Precisou. E guardou o vento no vidro. E levou a filha para casa, uma menina pequenina e saudável. Durante dois anos não houve mais tempestade de vento na cidade. Esperança crescia bonita, com seus cabelos e olhos negros, sua magreza e suas traquinagens. Aprontava sempre, desde bebê, e tinha o poder, depois que aprendeu a andar, de escapulir como uma rajada de vento das palmadas da mãe, que pensava: "Deve ser mesmo filha do vento". 

Com dois anos, Esperança brincava no pequeno quintal de casa, quando o vento começou a soprar. A mãe ouviu da cozinha o ruído fino do vento nas frestas da janela. Correu para o armário trancado com cadeado, pegou um dos muitos vidros vazios que havia estocado na gravidez, e correu para fora. A filha já voava pelos ares e quase alcançava o telhado. A mãe abriu a tampa do vidro e pediu com todas as forças da fé que o vento fosse aprisionado mais uma vez. Feito. E a menina começou a descer e pousou como uma pluma na grama do jardim. 

Alívio para a mãe. Esperança nem percebeu. Continuou a brincar como se o mundo estivesse no mesmo lugar. E o tempo passou, e a cada dois anos o fenômeno se repetia, nos mais diversos lugares: no parque aos quatro anos, na saída da escola aos seis, no quarto da menina aos oito e assim por diante. E a mãe sempre conseguia salvar a filha. E Esperança nunca se lembrava do que acontecia. O mesmo com todos. Só a mãe carregava aquela angústia no peito e aquelas histórias fantásticas de guardar vento em vidro de palmito. Se contasse, ninguém acreditaria. Mas ela acreditava e acreditou desde o início na história da vidente. E mantinha a esperança de fazer daquilo um segredo póstumo. 

Passados 16 anos após o nascimento de Esperança, a cidade já não vivia sobre os mesmos lírios e louros. Ameaçava explodir uma batalha entre o povoado e uma cidade vizinha. As notícias se repetiam ruins todos os dias na TV e todos viviam tensos, esperando o pior. Alheia aos problemas adultos, Esperança, no auge de sua adolescência, estava sozinha em casa numa tarde nublada. Tinha tomado aulas de culinária com a mãe e resolveu fazer uma surpresa e cozinhar um prato apetitoso. A menina freqüentara aquela cozinha desde pequena, mas nunca percebera o armário misterioso, que ficava ali mesmo, num canto, guardando os segredos maternos. Avistou o móvel e espantou-se, como se o visse pela primeira vez na vida. Percebeu o cadeado e ficou cabreira com a tranca. O que guardaria aquele armário fechado a chaves? 

Se estivesse aberto, talvez Esperança nunca o notasse. Mas a curiosidade lhe saltou aos olhos quando viu o cadeado. Não conseguiu tirar o armário da cabeça. Sonhava com ele à noite e pensava em como abri-lo de dia. Já não tinha mais interesse pela culinária, vivia assoberbada pelos cantos, não conversava na hora do jantar, passou dias sem eira nem beira. Até que houve uma tempestade na cidade, dessa vez de chuva e trovões. O pai de Esperança dizia que era o prenúncio da guerra, mas a mãe já sabia o que estava por vir. Para se prevenir, como sempre fazia, foi à noite até o armário da cozinha pegar um pote de vidro, apenas por precaução, caso o vento resolvesse aparecer de madrugada. Só que Esperança estava acordada e viu onde a mãe guardava as chaves que tanto procurou. 

Logo cedo, ainda chovia e trovejava, a guerra estourou na cidade. Todos se lamentavam e temiam o futuro incerto, já que os homens do exército opositor eram superiores e possuíam melhores armas. Sem pensar em guerra e sem medo algum, Esperança conseguiu as chaves e abriu o armário, logo depois que a mãe saiu a fim de comprar leite para fazer estoque. Assim que abriu o armário, viu aqueles potes todos, vazios, enormes, enfileirados em cinco prateleiras. Perguntou-se o que seria aquilo, suspeitou que sua mãe tivesse ficado louca, depois admitiu que poderiam ser apenas vidros velhos de palmito. Mas por que estariam guardados a sete chaves? Decepcionada com a descoberta, Esperança pegou um dos potes, o primeiro deles, e ficou observando por um longo tempo. Parecia hipnotizada. Foi quando sua mãe colocou os pé na cozinha e deu grito de espanto. Esperança assustou-se também e deixou o vidro se espatifar no chão de mármore. 

Um redemoinho se espalhou pela cozinha, pela casa, para fora. Esperança correu atrás do vento, encantada, certa de que a mãe tinha feito magia com os vidros. A mãe correu a buscar um pote vazio para apreender o vento fujão. Mas não deu certo. O vento não entrava no vidro, mas se espalhava mais e mais. E Esperança, encantada, conseguia ver o vento esparramado por todos os cantos, e um catavento girava no epicentro do vento, fazendo rodar e rodar e rodar com força todo o ar que vinha e ia. Esperança foi atraída pelo catavento como um ímã e segurou-se em uma de suas pontas, bem firme, como se tivesse feito isso milhares de vezes em sua vida. A mãe não entendia nada e só via a filha voar, voar mais alto, indo embora. Começou a chorar, desconsolada, enquanto sua filha, Esperança, voava no catavento do vento, pela cidade inteira e pelas outras cidades vizinhas. 

O que se sabe hoje é que a guerra acabou naquele dia. E o que se ouviu dizer é que a mãe, depois de perder a Esperança, perdeu o juízo e enlouqueceu. E os homens da cidade, conta-se, viram a Esperança no céu e nunca mais pegaram em armas. 

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