DELÍRIOS, E SÓ
Thaís Emília

Anoiteceu, e um silêncio sepulcral entalhou-se no breu das ave-marias, no sopro morno do ar velho empoçado pelos cantos da casa, e pousou suas asas de borboleta tristonha no balbucio dos meus ombros cansados. 

Deitada no lençol ralim de tanto tanque e quarar, pétalazinha de mal-me-quer pisada e desperfumada, escuto o vento, vira-lata azul e faminto, desenterrando do canteiro semeado de lírios as vozes mortas dos meus avôs.

(Amanhã chorarei sobre o canteiro desfeito, as sementes violentadas estorricando ao sol e, com a paciência resignada duma sacerdotisa imortal, ararei a terra novamente, fecundarei seu útero com as sementes de lírio e as regarei docemente, como se beijasse os olhos de alguém muito amado.E à noite, como todas as noites desde há séculos, o vento desfazerá o canteiro para desenterrar as vozes defuntas dos meus avôs.)

Despertadas pela ventania sibilante, as cantigas cheirando a café torrado e curral chovido dependuram-se nas minhas pálpebras açoitadas pela dor. Tateio o negrume feroz do quarto à procura dos meus avôs, vomitados de um ontem engasgado no querer. Suas bênçãos e ditos antigos, língua tecida com nuvens desfeita em toró, distanciam-se, aparecem acolá e aqui, forçando-me a brincar dum pega-pega empapado de desespero.

Esfarelo-me em saudades e perseguições - preciso abraçar meus avôs e detê-los junto a mim antes que, espantados pelo soar das três horas no pêndulo implacável, eles retornem a seu sono glacial e acre. 

Em vão. O gosto amargo do suor e das lágrimas nubla o céu da minha boca, e os ponteiros do relógio iniciam seu canto zombeteiro arrematado por três ais roucos, e as vozes dos meus avôs se calam na madrugada vazia. Estou novamente só.

Hipnotizada pela dor, pela exaustão, pela solidão, lanço-me ao relógio e o despedaço em migalhas inúteis.

Agora, quando anoitecer outra vez e o vento desenterrar as vozes dos meus avôzinhos, elas engastarão-se em minha rotina eternamente, sem que as três horas soem para espantá-las e fazê-las fugir. Não estarei mais só, nunca mais, e a Terra poderá cantar seus gemidos desafinados e roucos em seu eixo enferrujado, e o vento deixará de cavoucar o canteiro para roer as vozes dos meus avôs, e os lírios poderão florescer em paz. 

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