DESNORTEADA
Renata Cabral

Abriu os olhos. Não conseguia enxergar nada. Por um segundo pensou estar cega. Um desespero profundo pegou-a em cheio, mas respirando fundo lembrou-se de que provavelmente ainda era madrugada. A cabeça doía e a escuridão girava. Sentou-se na cama. Respirou fundo novamente. Um cheiro estranho entrou-lhe pelas narinas. Aquele odor não lhe era familiar. Estaria mesmo em seu quarto? Tentou se lembrar de como havia chegado ali mas não conseguia. Forçou os olhos e, girando a cabeça, procurou algo que lhe fosse familiar. O rádio-relógio. Ele estava lá, no lugar de sempre. Sua miopia a impedia de enxergar que horas eram. Cerrou os olhos e conseguiu ler os pequenos números vermelhos: 3 horas da manhã. Voltou a deitar-se. Acomodou-se no travesseiro. Engraçado, ele lhe parecia menor que das outras vezes. Devia ser sua imaginação. Virando-se para o lado olhou a janela. Parecia que estava maior do que de costume. Não, deve ser coisa da minha cabeça. Fez mais um esforço com seu globo ocular e conseguiu ver os vultos de suas coisas prediletas: lá estava seu abajour, sua escrivaninha estava no lugar de sempre, seu computador estava no mesmo cantinho. Relaxou e sorriu. Devia estar ficando maluca. Maluca e com muita vontade ir ao banheiro. Relutante, pisa no chão. Engraçado, ele não estava gelado. No mínimo tinha dormido de meia. Claro, como poderia sentir o frio do chão com os pés cobertos? Ruma em direção ao banheiro. De que lado ele está mesmo? Sua cabeça dói. Apóia-se na parede. Parece que vai desmaiar. Não, nada disso. Pernocas fiquem onde estão. Prometo a vocês que assim que usar o vaso voltamos para a cama. Por favor, me obedeçam. E elas obedecem. Não acende a luz do banheiro. Senta-se no vaso. Que mania minha mãe tem de trocar o desinfetante. Pra falar a verdade este é mesmo bem mais gostoso que o último. Prontinho. De volta ao quarto esbarra em algo no chão. O que será que eu deixei jogado por aqui? Provavelmente a blusa que da noite de ontem. Mas que blusa usei mesmo? Sua cabeça lateja. Vou parar de ficar forçando minha memória. Se fiz alguma bobeira, com certeza alguém me liga amanhã contando. Mas será que saí com alguém? Nossa, isso só pode ser amnésia alcoólica. Minha cama, só preciso da minha cama para ficar completamente recuperada. Cobre-se e fixa os olhos na parede. O quadro que o Jú me deu fica tão mais bonito à noite! Acho que nunca o agradeci pela gentileza de me dar este quadro. Preciso agradecê-lo. Claro que vou fazer isso amanhã. Ai minha cabeça. Jú, Jú, espere aí. Ai! Nossa, acho que sai com ele ontem. É, isso mesmo, saí com ele ontem. Saí com ele e briguei com ele. Isso mesmo. Ai que dor de cabeça. Na verdade, parece que ele brigou comigo e eu saí feito uma louca. Mas o que será que aconteceu? Nossa, o Jú é tão meu amigo. No mínimo eu aprontei, claro. Nossa, que fome. Sentiu o estômago roncar. Não, não. Me recuso a levantar. Estou morta de sono. Quero dormir. O estômago roncou mais uma vez, só que desta vez de forma estrondosa. Tudo bem, você venceu. Preferiu não acender a luz da cozinha. Se minha mãe acorda e me pega aqui com certeza vai me dar um sermão porque bebi demais, porque cheguei tarde. Vou fazer tudo com o mínimo de barulho. Esbarra em uma cadeira. Que mania a Jô tem de colocar esta cadeira no meio da cozinha! O que temos na geladeira? Xi, pelo jeito o Guto teve a mesma idéia que eu, só que foi mais esperto e apareceu por aqui antes de mim. Onde estão os meus chocolates? Não acredito, comeram os meus chocolates! Sentiu vontade de gritar mas segurou-se. Amanhã de manhã faria uma reunião com toda a família e instauraria a CPI do chocolate. Tudo bem, leite com chocolate está de bom tamanho. Voltou para a cama. Agora sim, pronta pra dormir. Ai que soninho gostoso e que dor de cabeça também! Trim, trim, trim. Droga, quem estaria ligando essa hora pro meu celular? Trim, trim, trim. Onde está esta porcaria? Trim, trim, trim. Pronto, pronto. Oi. Mãe. Calma, não estou entendendo. O quê? O Jú disse o quê? Mãe por quê você está me ligando no celular? Claro que eu quero saber. Como? Onde estou? No meu quarto, claro. Você está no meu quarto e eu não estou aí? Mãe, você andou cheirando alguma coisa? Não estou brincando não, mãe. São três horas da manhã, eu estou com muito sono e quero dormir. Onde eu vou dormir? Na minha cama mãe, claro. Como assim? Como na minha cama não pode ser? Mãe, eu estou na minha cama agora. O que o Jú disse? Disse que eu saí bêbada do bar e não quis voltar com ele? Que ele não sabe onde estou? Espere aí que vou te provar que estou em casa. Levanta da cama, vai até a porta do quarto e grita. Mãe estou aqui, está ouvindo? Não há resposta. Fala ao celular. Por quê você não responde? Pare com isso mãe. Vou fazer de novo. Mãe você está me assustando. Novamente sem resposta. Um arrepio sobe-lhe pela coluna. Estou em casa, eu sei que estou. Põe o celular novamente no ouvido. Espere aí. Procura o interruptor do corredor. Encontra-o. Por favor, que eu esteja em casa. Por favor, que minha mãe esteja louca. Por favor, por favor. Acende a luz. Demora alguns segundos para que seus olhos acostumem-se com a claridade. Abre bem os olhos. Solta um grito: onde estou? Pega o celular e começa a chorar com ele no ouvido. Mãe me ajude, mãe. Mãe, onde estou? Larga o celular no chão. Suas pernas tremem. Cai sentada. A cabeça dói. Flashes surgem em sua memória. Lembra-se de ter pego um táxi e de ter entrado no prédio. Lembra-se de ter chegado até o elevador com a ajuda do porteiro novo. Ele a chamou por um nome que não era o seu, mas cansada respondeu afirmativamente com a cabeça. O porteiro apertou o botão do andar no elevador. Pára de chorar. Corre para o quarto onde estava dormindo, acende a luz e pega suas coisas. Procura a porta de saída. Como teria feito aquilo? Como entrara na casa de um desconhecido sem nem se dar conta disso? Aperta o botão do elevador. Chega logo, por favor. Chega logo. A porta do elevador se abre e uma moça sai dele. Muito gostosa a sua cama, diz para a desconhecida. Entra no elevador e some. Como pôde dizer aquilo? Imaginou a cara da menina quando ela entrasse no quarto e visse sua cama desfeita, quando sentisse um cheiro diferente em seu travesseiro. Pediria desculpas a ela pela manhã. É, faria isso. Compraria um lindo presente e entregaria a ela assim que acordasse, porque agora, às três e pouquinho da manhã, tudo o que queria era a sua cama. Sua cama e nada mais.

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