UM
CÃOZINHO CHAMADO BIDU
Mairy Sarmanho
São três horas da manhã e acho que estou enlouquecendo, sozinho, nesse barco escuro que chamo de apartamento, remoendo o passado como um velho sem dentes, pensando em como tudo seria diferente se...
Existem dias em que gostaria de sumir, tamanho medo e dor que me acolhem. Fico imaginando minha mulher sentada na varanda, lendo um dos livros que costumava carregar à reboque, rindo e comentando como era feliz comigo; chego a ver minhas duas filhas deitadas no sofá, disputando milímetro por milímetro o espaço racionado, comendo pipoca e assistindo o mesmo filme pela oitava vez. Eu era feliz, como era feliz e sabia! Devorava cada instante de minha vida como um louco suicida, abraçando cada uma como se fosse a única e última vez, beijando-as, sufocando-as de tanto carinho e afeto. Eu amava cada dia que passávamos juntos, naquela vidinha comum e adorável com a qual sonhei a vida inteira e que aconteceu a partir de um simples Sim dito na igrejinha do bairro, na frente do padre, de nossos familiares e amigos. Adorei dar aquele beijo tímido em sua boca adocicada e a partir daquele momento poder chamá-la de esposa, dormir ao seu lado, acordar ao seu lado, comer ao seu lado, trabalhar juntos... Fiquei radiante quando soube que estava grávida e enlouquecido quando me contaram que seriam duas meninas. Duas! Eu, um pobre mortal, havia gerado dois lindos seres para o mundo: anjos iluminados que tornariam a vida bela, no mínimo, a nossa. E, ao pegá-las no colo pela primeira vez senti meu coração desabar de prazer e felicidade, pleno, amoroso, trial.
Aquelas mulheres eram meu ar, meu alimento, meu sangue, minha força propulsora. Elas me mantinham vivo e me obrigavam a sonhar um pouco mais... Por elas eu trabalhava, por elas eu existia. Tinha fantasias infantis quando as imaginava tão maravilhosas que o mundo inteiro se ajoelharia a seus pés. Para mim eram o máximo. Por elas eu faria qualquer coisa.
Qualquer coisa menos levar as meninas ao colégio na sexta-feira. Porque naquele maldito dia havia uma reunião importante no trabalho e eu tinha que chegar cedo. Porque naquele momento não me ocorreu que alguém pudesse roubar meus tesouros num estalar de dedos. Porque naquele instante eu hesitei...
Fui trabalhar cumprindo horário e minha mulher foi levar as meninas para a escola. A última lembrança que tenho é um beijo demorado na porta e eu, infeliz, tentando me livrar daquele carinho inoportuno e exagerado que sempre gostei de dar. E receber.
Os olhos das meninas ficaram de relance, atrás do vestido estampado de minha mulher, tentando me dizer adeus com o amor tão comum. E cotidiano.
Parti e, quando retornei, não havia mais ninguém. Todos tentam me consolar: não existe isso no mundo da solidão. A dura realidade me roubou os sentidos, os sentimentos, o amor. Abro o quarto delas e me deito em suas camas esperando que surjam do nada, sorrindo, atirando-se sobre mim, brincando, chamando-me papai querido. Mas a cama está fria e os brinquedos cobertos de pó.
Mesmo que o tempo engula minha vida, minha alma continuará vazia. Não suporto a noite, sequer o dia. Não suporto nem, ao menos, respirar.
Mas um anjo sopra lentamente sobre meus cabelos e sinto um forte perfume no ar. Ouço suas risadas e percebo que me querem rindo, resistindo à dor, sobrevivendo. Uma luz suave entra por baixo da porta e eu caminho até ela. Mas a luz não vem dali: chega morna pela entrada. Vou até lá. Debaixo da porta principal existe um clarão que devora o escuro. Abro a porta.
No corredor, um cãozinho manco me olha. Olho para os lados e não compreendo como aquela criatura chegou ali. Porém, na solidão da noite escura, convido-o para entrar. Dou-lhe água, comida. Ofereço um cobertor como abrigo. Ele se agasalha e dorme aos meus pés. Ouço o barulho abafado dos passos que se aproximam e afastam-se de mim. Elas brincam, rindo, crianças.
Quando amanhece, o cãozinho acorda, balança o rabo e me pede mais alimento. Percebo que tem uma coleira. Examino o objeto, curioso. Tem um nome: Bidu. Dou um sorriso ingênuo e me pergunto quem será o dono daquele ser que invadiu meu espaço morto para servir de companhia. Ele late e corre para o quarto das meninas. Vou atrás dele. Com o focinho ergue o travesseiro da gêmea menor e deixa à mostra o diário da pequena. Uma folha dobrada. Pego-o no colo e leio, enquanto as lágrimas escorrem, quentes, de meu rosto sorridente: "Um dia, vou ter um cãozinho. Vai ser pequeno e bonitinho. Vou chamá-lo de Bidu para que meu paizinho possa se lembrar daquele que teve quando criança."
Pego o cachorro no colo e saio, pela primeira vez em semanas, de casa. Preciso comprar ração e uma guia para levá-lo a passear. Preciso encontrar um veterinário que lhe dê as vacinas necessárias. Preciso continuar vivendo!
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