NEGOS
Luciana Franzolin
19:00h
- Tô passando aí, nega. Pode ir descendo.
- Mas que horas é o cine?
- Daqui a quinze exatos minutos.
- Belê! Passo um lápis no olho e já desço.
19:10h
- Ai que frio!
- Ninguém mandou lavar este cabelão hoje!
- Mas estava ensebado nego... Não teve outro jeito.
19:12h
- Uma meia e uma inteira.
- Esgotado! Ingressos só pra sessão das 10.
- E agora?
- Vamos ver umas lojas.
- Ai que calça de dragão maravilhosa, tem 42?
- Ficou muito apertada?
- Você emagrece!
- Vai lacear?
- Compra logo.
- No seu cartão?
- É né... Você nunca traz o seu.
- Em três vezes, por favor.
- Você é que nem eu, quando compra roupa já sai com ela da loja.
19:40h
- Falta muito pra sessão ainda, vamos comer?
- No bar novo?
- Pode ser.
19:57h
- Não tem lugar pra estacionar...
- Olha! Um cara está saindo bem ali na frente...
- Apaga o cigarro então. Põe minha carteira na sua bolsa.
20:05h
- Nossa, dez paus a dose de red, nego?
- Tá louco... O que você quer comer?
- Ah... Você escolhe, sempre gosto de tudo que você pede.
- Frango ao alho e óleo com palmito?
- Feito! E mais dois cognaques Domec.
- Cognac, nega?
- Ué, é pra esquentar não é?
20:18h
- Só tem patricinha aqui neste bar.
- Está muito cedo ainda, nego... Daqui a pouco você vai ver.
- Olha o cabelo daquela figura, parece uma piaçava.
- Como você é maldosa... Pelo menos ela é gostosa.
- Aonde?
- Ah... Uma bunda mais ou menos.
- Ai se eu fosse ciumenta, levantava daqui e ia embora.
- Se você fosse ciumenta a gente não namorava.
- É mesmo, se você fosse também não.
- Assim que é bom...
20:30h
- Huuuum, ótima pedida, nego. O palmito ta muito dez.
- Traz o pão, por favor. E mais dois cognaques!
- Falou que nem ia beber hoje...
- Desceu bem...
- Aaaaaah! Não pega o meu molho seu viado, deixei pro final.
- Hahahahaha, é pra você, nega. Sabia que você ia deixar o molho pra comer com pão. Italiana!
20:41h
- Ai, não agüento mais comer, nego.
- Hum, tá uma delicia isso aqui.
- O paladar pode ser comparado a sexo?
- Certamente... Sexo é uma necessidade tão antiga como comer.
- O que?
- Ééé... Completamente dispensável em estado e transcendência!
- Mas é possível deixar de comer, nego?
- Não é por aí...
20:58h
- Quer dizer que neste estágio que você está falando a companhia do outro não é prazerosa?
- Nada mais é tão prazeroso quanto a solidão. O lado feminino, no caso do homem, se iguala ao masculino e você não precisa mais do outro. É a integração perfeita. Não há necessidade de outro alguém.
- Como assim? Não ter prazer mais em companhia, em fazer carinho, em beijar, abraçar... Que coisa mais chata!
- É o caminho, nega. Todo tântrico tende a isso. Primeiro o desapego de posse do outro, depois, o desapego do outro.
- Tudo bem que o sexo, no sentido físico acabe um dia, mas e o carinho, o toque? E a conversa, dormir junto, jantar, acordar...?
- Isso tudo passa a não ter sentido. Na verdade, prazer, esse que a gente conhece, passa a não existir, e uma total sensação de liberdade toma conta, se desligar deste mundo mesmo. Nada mais maravilhoso!
- Que chato...
21:15h
- Mais dois cognaques, por favor.
- Mas nego, quer coisa mais gostosa que carinho? Eu sei que às vezes eu sou meio exagerada, tipo quero ficar beijando e babando em você, quero transar de manhã de tarde e de noite, mas isso eu acho que dá pra mudar, tipo, a gente pode ser mais toque só, pele, cheiro... Bem sutil, sexo em outro plano... A gente era bem assim lembra? Até você mexer com aquela posição...
- Para nega, tira a mão daí que todo mundo vai ver...
- Sorry... É que só de pensar eu fico com vontade...
- Ta vendo... Você tem muito que transcender ainda
- Hunf!
21:35h
- A conta, por favor...
- Nossa nego, eu pensei tanto em tudo isso que nem subiu o álcool, gastei tudo em combustível de neurônio.
- E eu não posso beber nem mais uma gota. Tem três reais trocados pro carinha que cuidou do carro?
- Nem, vou ao banheiro, pega a minha bolsa.
21:42h
- Vamos pro cine?
- Ah, desencanei pra falar a verdade...
- Quer ir tomar um banhinho então? Motelzinho?
- (cara de não)
- Vamos ao Armazen ver a Manu tocar?
- Se você quiser vai sozinha.
- Ai nego, como você está, parece que nem quer mais ter namorada.
- Não quero mesmo.
- Ahn?
- É isso nega, não quero mais namorar.
- Como assim? No meio do trânsito? Você ta falando sério?
- Tô, mas não tem nada a ver com você, é um processo meu, interno, eu terminei um relacionamento de dez anos e já comecei com você, não tive tempo de me organizar, tenho um monte de grilos pra resolver... Mas entenda que não tem nada de errado com você...
- Você está falando sério, nego?
- Infelizmente estou, nega.
(Ela tinha vontade de sair na rua com frio e de salto alto, bater a porta do carro e chorar de medo, se descabelar contra-mão acima, gritar, arrancar a roupa, mas agarrou o pescoço dele com a mão esquerda enquanto a direita fazia um carinho bem leve na perna que acelerava e brecava com soluços sufocados. Carinho na mão do câmbio, subindo nos braços peludos e o choro, o choro de um amor leve, de um amor desapegado, de um amor sem ciúmes e sem medos, sem cobranças, de um amor que deixava os cigarros doces e que de tão calmo, acabou em três horas).
10:00h
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