BEXIGA, 03:00HS DA MADRUGA
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Fim de festa. Sonolência. Raspas e restos sempre me interessam. Eu sou o consolo e a carona das rejeitadas, das que sobram, das menos, digamos... privilegiadas esteticamente. O poeta, exigente, pedia perdão às feias - beleza para ele era fundamental. Eu não. Nem poeta sou. E também não sou muito de perdoar.

Tem mina aí que só sai com caras que tem carro. Típicas "gasolinas". Quando falo que estou de carro, elas se animam, dão trela. Quando vêem meu fusca 73 verde-abacate, o Marciano, torcem o nariz, fazem troça, tiram sarro. Tem que ser de Monza, Escort XR3 pra cima.

Mas no fim de noite, o que vier é lucro. Três da madruga, quando não há mais ônibus rodando pela cidade e ainda faltam duas longas horas para o metrô começar a funcionar, eu sou o cara certo no lugar certo. E de carro.

Outro dia, numa festa de aniversário, atirei para todo lado. A esmo. Festim de festa. Os caras e suas máquinas maravilhosas levaram embora todas as minhas chances. "Melhor puxar o carro", decidi. Embora fosse mais provável - o problema na bateria - que tivesse mesmo era que empurrá-lo. Antevendo que quando saísse da festa talvez não houvessem bons samaritanos que se dispusessem a me ajudar a fazer o Marciano pegar no tranco, eu o havia estacionado numa ladeira providencial. 

Foi quando a vi, largada num canto, os pés inchados descalços das sandálias, ar preocupado. 

"E aí?", cheguei junto. Lata de cerveja na mão.

Ela riu e eu me convenci da minha capacidade fora-de-série de arrancar risos dos meus interlocutores. Eu tenho veia cômica.

A minha primeira reação foi verificar se havia esquecido a braguilha aberta. Ela percebeu meu embaraço e riu mais ainda.

“Não entendi!", eu disse.

E ela fez um gesto com a mão, de quem diz "deixa pra lá, não é nada" e eu insisti:

"Está sozinha?"

Ela simplesmente disse "Estamos" e me incluiu no universo que se elaborava ao nosso redor sem que nos déssemos conta. 

Estávamos. Quase três da manhã e éramos os últimos, os únicos que ainda não tinham inventado algo melhor para fazer aquele fim de noite.

"Posso ... ?" Eu ia perguntar se podíamos levar um papo quando ela me atropelou com a clássica pergunta: 

"Está de carro?"

"Estou de fusca", respondi na bucha para que não tinha escolha.

"Cara, eu adoro fusca", ela sorriu. Não tinha um sorriso bonito; mas os olhos, por trás das grossas lentes, eram sonhadores. 

Fiquei meio pé-atrás mas vi sinceridade naquele olhar.

"Sabe aquele filme 'Se o Meu Fusca Falasse' ? Vi uma pá de vezes!”

Pronto. Estávamos íntimos. Podia até ser que não rolasse nada que a noite estava ganha.

Apresentei-lhe o Marciano e foi paixão à primeira vista.

Três da manhã, na 13 de maio, um imprevisto: ficamos sem gasolina. 

"Mania besta de andar sempre na reserva" tentei inventar desculpa "O Marciano jamais me deixou na mão"

Ela retirou os óculos, beijou-me compreensiva e disse-me para não me preocupar:

"Esquenta não. Ele te deixou em boas mãos"

O dia logo viria nos surpreender – pombinhos de mãos dadas - tomando café e comendo pão quentinho com manteiga na padoca da esquina. Lá fora, vidros embaçados e umidade de orvalho sobre a lataria verde, o Marciano nos esperando com aquela paciência que só os velhos carros têm. 

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