A
GALERIA
Umberto Krenak
A estrada era longa e sinuosa, à direita um penhasco projetado sobre o mar; do outro lado, a montanha escarpada, tingida de tons vermelhos. Ele fechou os olhos e imaginou-se aquele traço negro quase imperceptível sobre o mirante. Sentiu o vento roçando a sua nuca, um arrepio. Parece Monte Carlo, não? A voz aveludada dirigia-se ao moço vestido de preto que se espremia entre duas gordas senhoras. É, parece sim. Você já esteve lá? Perguntou o rapaz. Iluminados pelo holofote, os olhos daquela loira eram duas esmeraldas quase transparentes. Ela desviou o olhar, e ele teve a impressão de estar sendo observado já há algum tempo. Ah, o filme com a Grace Kelly, qual era mesmo o nome? Ladrão de Casaca, é isso? Um minuto de reflexão e ela desaparecera. O lugar estava lotado, as pessoas se acotovelando para ver as obras. O moço de preto também sumira. Que mulher!...Voltou sua atenção novamente para a pintura. A única coisa que lhe vinha à mente, no entanto, era a silhueta incompleta, aqueles olhos felinos, os delicados sapatos de salto. Procurou-a desesperadamente no turbilhão da galeria, uma floresta de divisórias, perscrutou todos os vãos. Terá saído? Talvez no café do primeiro piso, muita gente vem à galeria por causa do café. Não, não estava lá. Voltou ao segundo andar e exaustivamente vasculhou cada canto, cada pedaço do salão; às vezes se entusiasmava, o coração se acelerava. Nada! Desolado, já no fim da noite voltou ao quadro do penhasco e imaginou-se novamente no cenário. Lá embaixo o mar, domesticado pela distância; o vento reconfortante embaraçando seus cabelos. Olhou para o chão, algo brilhava, abaixou-se, um anel, olhou em volta, ninguém, guardou-o no bolso do blazer. Lembrava de ter ouvido um tilintar, mas estava tão cheio àquela hora. Devia ser dela. Não, não ia deixar nos perdidos e achados. Iria entregá-lo pessoalmente. Foi um dos últimos a sair do prédio. A noite pedia companhia mas estava exausto. Já em casa deitou, não pegou no sono. A recorrente imagem do penhasco, da mulher e de si mesmo, um ponto negro perdido na estrada sinuosa. Foi para o computador, pesquisou, papeou, trabalhou. Quando levantou já amanhecia, dormira sobre o teclado. Domingo: tomou banho, visitou alguns parentes apenas para matar a ansiedade. À noite, voltou à exposição. “Está mais cheio”. Com muito custo aproximou-se do quadro do dia anterior. Que sapatos ela usaria? Algo refinado, sem dúvida. Olhou em volta, vasculhou os pés por trás dos biombos, simulou situações, seguiu pegadas. Em vão! Andou a esmo até bem tarde. A mostra fica até que dia? Perguntou ao rapaz da cafeteria. Hoje é o último, não é Anita? É sim, respondeu a moça, surgindo na portinhola atrás da prateleira de bebidas. Era a moça do dia anterior, linda. Sua mulher? Perguntou baixo ao barman. Não, minha ajudante, respondeu. Posso falar com ela? Mas claro. Anita! A moça surgiu ao fundo e veio requebrando enquanto afrouxava o laço do avental. Não, não era ela. Não era! Como pôde confundir? O que foi? Nada, moça, desculpe. Tá bom. Desculpe, resmungou três vezes consigo mesmo. Voltou ao salão e procurou pelos pés. Ouviu uns passos ligeiros no lado oposto, às suas costas, sapatos de mulher, salto agulha, dourados, seguiu-os pela longa divisória, caminhando no mesmo ritmo, o coração disparado. Antes do final ela virou à esquerda. Ele também. Parada. Parou. Silêncio. A ala vazia. Estavam sós. Ela se abaixou e ele pôde ver, por baixo da folha de madeira, as delicadas mãos cavoucando entre restos de programa rasgados, espalhados num canto. Resistiu à vontade de abordá-la ali, ainda do outro lado do biombo. Apressou o passo. Quando fez a volta ela ainda estava agachada, de costas. Ele se aproximou e tocou seu ombro. É isso o que procura? Tirou o anel do bolso. Com ar de surpresa ela abriu um sorriso iluminado. Eu te procurei para entregar ontem ainda, mas não te achei. Ah, foi? Agora estavam os dois de pé, próximos, tão próximos... os corpos envoltos numa nuvem de calor. A atração inevitável. Tudo o mais foi ficando distante. As bocas se colaram, os corpos arderam e as mãos se entrelaçaram como hera. Ele a puxou para um canto escuro e ali, atrás de pesada cortina, transaram apressadamente, com a roupa no corpo. Ela agradeceu e saiu. Nunca mais se viram.
FIM
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