ALMOÇO GRÁTIS
Samuel Silva
Noite. Dizem que neste período todos os gatos são
pardos. Não sei, não sou cromófobo, gosto de algo vermelho, até para quebrar o padrão “capa preta”
que domina a moda feminina... Cadê o branco? Estou cansado, dirigindo faz algum tempo e minhas costas
doem. Aliás, estou bastante dolorido desde que saí da casa da Alfa, irritado com a mania dela (de toda mulher) de não
respeitar o meu FPC (fastio pós-coito). Eu tenho que respeitar TPM, a necessidade dela conversar, as respostas longas e que me exasperam em tantos
detalhes que ela dá àquela simples pergunta: “como foi seu dia?”.
Definitivamente, vou abandonar as amadoras e vou me relacionar, na medida das minhas necessidades, só com as profissionais, embora com essas também
não possamos gozar e virar para o lado para tirar um cochilo porque elas podem levar nossa grana toda e não só o preço contratado. Mas elas fingem um
orgasmo melhor do que as simplesmente amorosas. E saem, ao fim e ao cabo, mais baratas: o preço da trepada e de um quarto de hotel e pronto! Não
precisa pagar chopp e petiscos, jantares em restaurantes, presentes, flores, contas telefônicas altas. Tenho que me lembrar de fazer orçamentos
comparativos de quanto custa uma noite de bom sexo com uma profissional e outra com uma amadora. Quantas saídas com a garota antes dela dar?
Bom, tenho que também calcular custos parciais, afinal com as amadoras há uma escala progressiva: conversa e beijinhos no rosto; beijos na boca em
despedida; beijos na boca sem amasso; beijos na boca com amassos; sexo oral e suas variantes “de favor sem nojo”, “de favor com nojo” e “com gosto”;
sexo usual; sexo anal; sexo “não-usual”, que inclui realização de fantasias
diversas envolvendo roupas e acessórios, inclusive o acessório mais desejado: outra mulher, de preferência a melhor amiga ou a irmã (dela,
claro)!
Pensando bem, vamos tirar essa da outra mulher. Só existe na imaginação masculina e nesses contos que se escrevem como eróticos.
Ou não? Bom, não conheço tanto assim, aliás, nada conheço do universo feminino para saber e também nunca cheguei ao ponto de efetivar uma proposta
neste sentido até porque as melhores amigas e irmãs, quando existiam, não valiam o esforço e ainda poderiam comprometer, física e psicologicamente,
minha performance junto ao interesse principal.
A estrada está muito bem conservada depois que privatizaram e não me importo de pagar o pedágio por isso. Não existe almoço grátis.
Começa a tocar “Paixão” no rádio e mudo de estação. É uma música que me
remete à Alfa e não quero pensar nela agora, porque tenho que me concentrar em dirigir.
Pronto! Música baiana, não carece de pensar, apenas deixar a melodia ficar de som ambiente. Banda Eva. Putz, a Ivete Sangalo é um avião de responsa,
mas alguém sádico me disse que ela é adepta radical do “black is beautiful”
e eu não conseguiria me enquadrar nem com um ano de bronzeamento. Não é preconceito, apenas uma constatação baseada em fofoca que possivelmente nem
é verdade, porque gostamos de falar mal de figuras públicas. Artista homem bonito é viado, artista mulher bonita é piranha demais ou sapatão. Ivete
cantando para mim Beleza Rara...
Não agüentei e ri alto. Eu? Beleza Rara? Sob um certo ponto de vista, sim. Digamos que minha oftalmologista tem dificuldade de fazer meu exame de
vista!
Apago Alfa da cabeça, com a lembrança da dentista. Incrível o processo de associação de idéias: oftalmologista-médica-uniforme branco-dentista. Que
dentista que havia escolhido! Uma mulher alta, mulherão mesmo, fornida, lá de Botucatu, e que, insensível, rejeitou minha proposta de brincar com a
rima. Me dispensou colérica quando, em meio à consulta, eu de boca aberta, ela meio debruçada sobre mim, enfiei a mão entre suas pernas. Tá, eu sei que
não foi um gesto carinhoso e que ela estava em pleno trabalho, mas me deu vontade, putz! Com o que eu já gastei com ela, algumas consultas mesmo sem
necessidade e outras várias obturações e blocos e limpezas, poderia ter mais consideração. Sim, poderia, afinal não existe almoço grátis!
Botucatu, São Paulo. Gosto das paulistas. Tive uma mestiça de olhos esverdeados, filha de japonesa com alemão, viciada em cigarro, café e
madrugadas. Adorava conversar, mesmo trepando falava pelos cotovelos coisas loucas, não só palavrões e obscenidades, mas até receita culinária. Era
inteligente e tinha aquele fatalismo oriental misturado ao pragmatismo germânico: entre quatro paredes valia tudo, mas só entre as tais paredes. Eu
fazia as espanholas e ela gargalhava... Sumiu, a moça, após tirar uma grana minha para um aborto de um suposto filho meu. Claro que não era verdade e
óbvio que ela sabia que eu não acreditei, mas era inteligente o bastante para compreender que eu daria mais facilmente o dinheiro se houvesse uma
razão qualquer para isso. Não existe almoço grátis, eu sabia desde antes de então.
Ela tinha uma amiga, o justo oposto dela, morena, pele acanelada, com uma timidez abusiva, verdadeira provocação, sempre em roupas sexies, mas sem
vulgaridade. Decotes e transparências, pernas de fora no ponto certo. Mas era exibicionista. Após ligada pelo tesão, não
queria saber onde estava, queria porque queria e não se importava muito com eventual platéia.
Transamos em carro até ter tanto curioso em volta que a polícia chegou pensando que era briga ou coisa pior. Graças a Deus, nossos policiais não
são suíços e entendem bem os apelos da carne e nos liberaram ao custo de alguns churrascos. Banheiro de restaurante, uma vez, e nisso nos ajudou o
fato de ela absolutamente não emitir nenhum som durante o sexo, apenas alguns gemidos baixos, contidos. Tanto fizemos que um dia, trepando na
praça perto de sua casa, em pé encostados numa árvore, fomos presas ridículas de um gatuno armado que me levou carteira com dinheiro, cartões de
crédito e o carro. Levou também a paulistinha. Não existe almoço grátis, mas
fechou-se esse restaurante.
Temo acelerar demais e ser flagrado por um radar. Multas me aborrecem. De súbito, um som de estrondo, a direção fica bravia, reduzo e paro no
acostamento com o carro corcoveando. Ligo o pisca-alerta, perscruto as redondezas a procura de algum perigo, mas só vejo a noite escura sem lua e
sem estrelas. É o pneu dianteiro esquerdo. Vou pegar o estepe e o macaco. Só acho o estepe. Que maldito sacripanta terá me roubado o macaco! E o inútil
triângulo! O energúmeno nem fez o troço direito: deixou o estepe!
Após alguns minutos xingando tudo e todos, menos a mim, apesar de minha culpa em pegar a estrada sem as verificações de rotina. Penso, tentando me
lembrar a quanto tempo passara por um posto de gasolina e serviços. Fazia tempo. Estradas pedagiadas, mas sem muitos pontos de apoio. Lembrei da
propaganda e caminhei um pouco para trás, tentando achar um daqueles telefones de emergência que foram instalados ao longo da rodovia.
Achei o pequeno poste pintado de amarelo, mas não o aparelho, roubado. Não se respeita mais nada, nem as emergências. Desanimei com a convicção de que
nada adiantaria procurar um telefone de emergência da concessionária porque não devia ter restado um. O celular esquecera no criado-mudo após a
discussão com Alfa que o atarantou na hora de sair naquela viagem de negócios.
Lei de Murphy. Ou de Brooke?
Uma luz se acendeu em minha memória: a luzinha que avistara à margem da estrada, um pouco entranhada na escuridão alguns quilômetros atrás. O carro
estava trancado, a noite estava pouco fria; o médico não recomendara exercícios, caminhadas?
Andei por boas duas horas, me concentrando no trabalho, nas coisas que tinha que resolver no dia seguinte e o tempo passou sem muito esforço, as pernas é
que reclamaram da surpresa, até que cheguei no ponto em que uma estradinha de terra saía da rodovia para dentro do breu e parecia servir à luzinha que
eu procurava.
Durante a caminhada, por mais que pensasse em obrigações, volta-e-meia me assaltavam dúvidas sobre meu intento.
E se a luzinha fosse apenas uma lâmpada em uma casa desguarnecida, como aquelas luzes de varanda de casa de praia no inverno, acesas dia e noite
para dar ao proprietário a falsa impressão de que nada seria roubada por ladrões? Como se os bandidos não soubessem desse ardil velho como a Rainha
de Sabá.
Afastei essa idéia com um meneio de cabeça, otimista. Devia ser casa de algum colono, algum pequeno agricultor. Era tarde, ele estaria em casa após
o dia de labuta, descansando para amanhã.
E se ele estivesse dormindo a sono solto, feito pedra? Conseguiria eu acordá-lo? Ou ele tinha cachorro que ladraria até que ele saísse à porta
para ver o motivo do alarido?
Três cachorros, apostei comigo mesmo, e ele acordaria. Gente da zona rural tem sono leve porque dorme bem, no silêncio absurdo do campo.
E se ele acordasse com alarido e fosse ou medroso ou irritadiço? Sairia com uma velha espingarda na mão, carregada e pronta para atirar? E como reagiria
ao ver aquele desconhecido? Esperaria a explicação ou mandaria logo chumbo no inconveniente e talvez perigoso visitante?
Não, ainda que desconfiado, seria amistoso. Gente do interior é mais simples e menos maliciosa do que nós, da cidade grande, viventes na verdadeira
selva, lutando a cada dia com nosso maior predador, nós mesmos, nossos irmãos. E eu pediria um macaco emprestado, ele até me daria carona num velho
fusca até meu carro e me ajudaria na ingrata tarefa de trocar o pneu. Eu, claro, agradeceria e lhe daria um dinheiro. Não existe almoço grátis.
Mas ele podia não ter um fusca ou o macaco não se adaptasse ao meu carro. Talvez ele nem tivesse automóvel, só um pangaré cansado das lidas e da vida.
Ainda que fosse prestativo... De que prestaria...
Entrei na estradinha, mais uma trilha de terra e segui alguns metros até um portão de madeira rústica, apenas pedaços de árvore pregados. Olhei em volta
e vi o que parecia uma vemaguete! Meu Deus, isso ainda existia? Os cachorros eram três, sim, mas um tinha o porte de um fila e vieram latindo para mim,
até a da porteira.
Não ousei mais. Imaginei o morador da casa, acordando assustado com o barulho dos cães, talvez já estivesse me
vendo por entre as ripas da janela. Imaginei-o pegando a arma, conferindo a carga de munição, acomodando a
coronha no ombro contra o coice do tiro. Eu gritaria para ele se acalmar, explicaria o mais rápido e
sucinto possível o que me sucedeu, coisa banal, acontece com qualquer um. Que ele diria? Esperaria eu contar meu azar? Me
mandaria calar? Atiraria no meio de minha argumentação acovardada sob os olhos duplos da espingarda?
Não? Não estaria armado, mas mal humorado e me mandaria para o inferno. E, como saída honrosa para meu orgulho e dignidade feridas, eu gritaria "vai
tomar no cu", "enfia o macaco no rabo, seu jeca tatu!".
Sim, isso é o que faria e antegozava o troco, a adrenalina correndo e expandindo veias e percepção.
Um rangido me fez olhar a porta.
Saiu um homem pequeno, magro, iluminado pela lâmpada da varandinha. Não tinha arma na mão, apenas um terço ou coisa assim. Notei uma luz avermelhada
que parecia irradiar-se de dentro da casa, acima da porta, como aqueles nichos de restaurante de estrada onde se venera são jorge ou nossa senhora
em estátua.
Disse a que vinha. Ele entrou e voltou em seguida, fechando a porta com uma tramela. Resmungou algo ininteligível, abriu a porteira, escorraçou os
cachorros, deu-me carona, me emprestou o macaco, ajudou com o pneu. Sonolento, se despediu e voltou para sua casinhola perdida na estrada.
Acendi um cigarro. Nem me deu tempo de lhe dar um dinheiro, coisa de cem paus que mentalmente reservara para gratificá-lo. Silencioso veio e foi.
Que trouxa, não sabia que não existe almoço grátis.
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