CARRANCA E A CAIXA DE
SAPATOS
Rodrigo Stulzer Lopes
Ele era menino pobre do interior. Andava descalço na maioria das vezes ou de chinelos de dedo quando tinha que ir para a escola. O pé ficava tão encardido que a mãe o puxava pelos cabelos para poder colocá-lo dentro da tina. O próximo passo era esfregar o que mais pareciam patas do que pés.
Por Carranca ele era conhecido. Diziam que Deus não tinha sido generoso com ele em relação à beleza física. Apesar das feições não o ajudarem muito, seu índice de malandragem e peraltice batia todo o resto.
E foi num dia quente de verão, indo para a escola, que Carranca viu a coisa caída no meio da estrada. Olhou para os lados e ficou se perguntando quem teria perdido aquele negócio, ainda mais na estrada.
Era uma caixa de sapatos, provavelmente caída de um caminhão de mudanças ou do bagageiro de um caixeiro viajante. Levantou-a já pensando no bonito par de sapatos que poderia encontrar dentro dela. Decepcionou-se quando a caixa veio facilmente, como quando fazemos mais força do que o necessário para mover algum objeto. Abriu-a e estava vazia.
Ia jogá-la no acostamento mas teve uma idéia mirabolante, daquelas que qualquer menino maroto tem de cinco em cinco minutos. Pegou a caixa e encaminhou-se para a escola. Ao chegar a menos de uma quadra do colégio escondeu-a atrás de uma construção abandonada. Iria esperar para pregar a peça no final das aulas.
Durante a manhã imaginou várias formas para melhor posicionar a caixa na saída. Naquele tempo, assim como ele, as outras crianças que
freqüentavam a escola eram pobres. Ninguém vinha de sapatos, salvo um ou outro menino, que em dias de chuva, emprestava a galocha dos irmãos maiores.
Estava muito quente e Carranca imaginava os pés vermelhos de seus colegas e dos outros alunos da escola; quando muito usavam um chinelo de dedos. Para completar o seu plano precisava de algo bem pesado e que pudesse entrar dentro da caixa.
Na hora do recreio perambulou pela escola inteira, até que achou uma pilha de tijolos. Eles estavam sendo usados para levantar um pedaço do muro lateral que havia sido derrubado por uma árvore durante o último vendaval. Pegou um tijolo grande, daqueles de seis furos e o jogou para o lado de fora da escola, bem no cantinho do muro, para ninguém ver.
Quando faltavam trinta minutos para o sinal bater, Carranca começou a fingir uma baita dor de barriga. Infernizou a professora até liberá-lo. Na verdade ela não acreditou muito na história, mas era melhor dispensá-lo logo do que ficar ouvindo os gemidos que o menino não parava de emitir.
Carranca agradeceu a professora e com um olhar maroto correu para a saída. Do lado de fora pegou o tijolo e foi para a construção abandonada. Abriu a caixa de sapatos e colocou o tijolo dentro, fechando com a tampa para se certificar que ela parecesse inofensiva.
Faltando dez minutos para o sinal, Carranca levou a caixa com o tijolo para a frente da escola. Pensou bastante e decidiu que o melhor posicionamento dela seria a uns cinqüenta metros da saída, bem em frente ao portão principal. Andou até o ponto escolhido e colocou-a com o lado maior virado para a saída. Andou um pouco em direção ao portão e notou que ela estava muito retinha. Voltou e a virou um pouco mais, só para dar a impressão que havia sido jogada no meio da rua.
Ao soar o sinal escondeu-se num matinho ao lado da rua e ficou esperando, olhando para a saída. Os primeiros alunos começaram a sair e nada fizeram. Carranca já estava achando que a sua tramóia não iria dar certo e começou a baixar a cabeça, desanimado. Foi quando escutou um menino gritar: "Pessoal, olha a caixa no meio da rua!" Carranca escondeu-se da melhor maneira possível e, ao mesmo tempo, tentou se posicionar para ver o resultado do seu plano, de camarote.
Naquele momento o tempo pareceu parar. Primeiro um, depois dezenas de meninos fitaram aquela caixa enigmática no meio da rua. Eles olhavam um para o outro e a tensão crescia. Menos de três segundos depois do grito-da-caixa-na-rua, já enfileiravam-se mais de duas dúzias de meninos fitando-se e olhando para aquele objeto de desejo.
Como o estouro de uma represa todos saíram correndo para ver quem seria o primeiro a conseguir chutar a caixa vazia. Normalmente a volta para casa sempre tinha este tipo de brincadeira; chutava-se de tudo, desde latas abertas até pinhas falhadas. Uma caixa era um luxo, ainda mais inteira e brilhando como aquela estava. Todos os meninos tinham uma gana enorme para dar um chute na caixa e deixá-la toda amassada. Imagine quem conseguisse ser o primeiro a dar uma bicuda naquela caixa toda perfeita e lustrosa. Seria o máximo; teriam assunto para os próximos três dias.
O sorriso de Carranca só aumentava à medida que a tropa de meninos corria em disparada tentando alcançar a caixa. A vontade era tanta que já nos primeiros dez metros dois caíram no chão, esfolando a mão e um pouco do ego; haviam levado uma rasteira dos que estavam vindo atrás.
Na metade do caminho a molecada avançava à toda velocidade, sempre tentando tirar os que estavam na frente e derrubar os que estavam do lado. Nesta hora não havia amizade, mas sim inimigos, que deveriam ser dizimados para que o objetivo maior, despedaçar a caixa com um lindo chute, se concretizasse.
Carranca não conseguia conter o riso, sua barriga doía com a cena que estava se firmando na sua frente. Cinco metros, quatro, três metros, dois, um metro...
TUMP!
O barulho seco do chute do primeiro menino atinge em cheio o meio da caixa. O impacto do pé com o tijolo faz sua unha, que estava encravada, penetrar alguns centímetros dentro da carne. O seu grito é abafado pelo empurra-empurra da tropa vindo atrás. O segundo, vendo a caixa intacta, acha que o primeiro havia errado o chute e mete outra bicuda. Como o primeiro, uiva de dor e é empurrado pelo resto dos meninos que vêm atrás. Cai ao lado do primeiro segurando o pé, agora sangrando e já ficando roxo e inchado como um pimentão.
Um por um os meninos caem no conto de Carranca. Somente os últimos da fila se safaram. Viram que algo deveria estar errado, pois não era normal quatro ou cinco moleques deitados no chão, chorando de dor e segurando os pés ensangüentados.
Pegaram a caixa e a abriram, descobrindo no seu interior um baita de um tijolo de seis furos, intacto. Carranca já descolado das brincadeiras que sempre aprontava, estava a mais de uma quadra dali, rindo e correndo como um fugitivo. Voltou para casa cantando e com uma baita dor de barriga, de tanto rir.
Sua mãe estranhou porque ele não fugiu naquele dia, quando o chamou para entrar na tina e lavar os pés. Carranca sentou sozinho na tina e começou a acariciar os pés e limpá-los com água e sabão, com satisfação e um enorme sorriso nos lábios. Sua mãe pensou que já era hora mesmo do menino ficar mais comportado. Até que enfim ele estava tomando juízo.
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